entra no escritório, traz na mão um papel, fuma um cigarro, - então diga lá, e eu curioso sobre o papel que ele traz na mão, ao fundo as gelosias ardem o seu verão, - então diga lá,
eu pego no gravador, tossico, um cheiro subtil invade a divisão, o homem de rosto fechado senta-se, e eu lembro aquelas rugas no sorriso do meu avô,
-eu gostava que isto fosse demorado,
digo, ele tossica, e a seguir respira fumo, a cinza cai no tapete persa coçado,
em tempos ele disse, noutra entrevista, que as tias, já perto da morte, dava-lhes para acenderem velinhas para tudo quanto era morto, os pais, os pais das criadas,
-queriam ganhar o Paraíso com velas,
gracejo, e ele sorri, adivinho uma palavra, ele hesita e nada diz, levanta-se, vai até à janela e afasta as gelosias, o trânsito amortecido pela cidade entra na sala, é verão e ele diz,
-comece lá, que eu preciso de acabar isto cedo,
eu ligo o gravador, olho-o nos olhos, o papel que ele trazia nos dedos é amarrotado e atirado com vigor para um canto perto do sofá castanho, ainda vou a tempo de ver a palavra,
"entra no escritório, traz na mão um papel, fuma um cigarro"
uma sageza ingénua, juvenil espreita do azul dos olhos, ele vê que eu vi, -para começar, este seu livro, é aquilo que queria? um sorriso passeia-se por momentos no rosto, ele responde,
-é sempre, e nunca é, sabe, quer dizer, este nasceu como eu queria, mas entretanto já embarquei noutro...
retira um cigarro do maço que está no bolso da camisa, acende-o.
-o último costuma ser o melhor, não é assim?
-bem, nem sempre, mas para mim, é, até que... dizem-me que sim, dizem que sim... e penso que confio mais na opinião dos que me aconselham do que na minha, é muito difícil ler criticamente aquilo que escrevi, é como se fosse o meu sangue, as entranhas.
levanta-se e passeia pela sala, resguarda-se, esconde o olhar ao dizer isto, mantenho-me sentado, de gravador na mão. Durante alguns segundos, apenas se ouve o ruído arrastado da cassete. E os pássaros de verão estremecem no arvoredo em frente.
-o sofrimento do escritor...
atrevo-me, e arrependo-me do meu passo, do irremediável lugar-comum, outro sorriso como pagamento.
-já disse isto não sei quantas vezes, mas olhe que é verdade, é verdade...
entretanto sentado, deita cinza num cinzeiro de metal (afinal levantara-se com um propósito), decide apagar o cigarro.
-não acredito na escrita fácil, na inspiração, preciso de trabalhar muito, como um pedreiro, ou um escultor... é um trabalho que pode ser fisicamente extenuante.
-tem um horário, como o pedreiro?
não sei se nota a ironia da pergunta, nada se acende nos olhos e enfrento-o, por momentos confiante.
-tenho, tenho, nem sempre o cumpro...
pega num papel limpo e numa caneta, em cima das pernas cruzadas começa a rabiscar qualquer coisa.
-lembra-se de como tudo começou?
levanta os olhos e quase que simula um sorriso. Hesita, a sua mão direita treme ligeiramente, eu mexo-me na cadeira enquanto espero.
-vou-lhe contar uma história. Não, espere, não é isso. O bezerro, quando nasce e vai a correr procurar a teta da mãe. Quem lhe ensinou? Como é que ele sabe que reside ali a sua sobrevivência? Perguntou-me como tudo começou? Não sei, simplesmente não sei... E repare, isto está ligado à sua pergunta anterior. Não preciso de sobreviver com horário definido. Existo, respiro, escrevo; é tão simples como isto.
o bico da caneta recomeçou a escrevinhar algo. Quando mais tarde vi o que estava escrito, não me surpreendi. Mas agora ainda nascia o presente.
-houve um tempo na sua vida em que teve de conciliar a escrita com outro trabalho. Era difícil?
-mas claro, claro que sim. Precisava de todo o tempo para escrever e via-me a ter um emprego burocrático de 8 horas diárias. Pensava então noutros escritores que tinham passado pelo mesmo. O Tom Castro, por exemplo, que falhou o suicídio aos 34 anos depois de cair na miséria. Ajudaram-me bastante, esses fantasmas.
o incansável ofício das cigarras entra numa onda pela janela. Ele levanta-se e fecha as portadas. E fica um momento olhando as árvores que estremecem com o vento.