Quando aos domingos os pássaros andam pelos jardins debicando nas migalhas, saio para passear o cão e deslizo entre os carros, procuro nas ruas réstia de sol, ou de chuva, que me aconchegue nesta vida. Fujo de tudo, ela diz-me, fujo de tudo, será isso, dos gritos dos miúdos, a Inês pulando pela casa, o Gonçalo correndo à frente do Artur, que remédio, admito a minha fuga, se saíssemos, deixamos os putos na minha mãe, farto-me de dizer, mas não importa, acendo um cigarro e vou fumar para a varanda, espreito a vizinha do outro lado da rua espreitando-me, quem vê e quem é visto, ela estende a roupa do fim-de-semana, vi o marido a sair de casa antes de almoço, foi encontrar-se com os amigos, logo à noite chega à casa com os copos e há barulho outra vez, disse-me o Pires, que é vizinho deles, uma vez estiveram para chamar a polícia, mas não adianta; entre marido e mulher...
É jeitosa, a mulher, julgo que se chama Júlia, lembro-me da curva dos tornozelos enquanto vou olhando para o cão a mijar contra o BMW do vizinho de cima, ainda estou para saber por que razão ainda não se mudou, todos os fazem quando sobem na vida. Eu não, saí de Lisboa há muito anos, antes de saber que depois já não havia volta, depois de partirmos é difícil haver volta, existe uma preguiça, uma acomodação à modorra da vida, acordar, sair de carro, levar os filhos ao colégio, perder duas horas na bicha, aturar o patrão, esperar alguma ponte e a ansiedade das férias, mais bichas para o Algarve, engordar, beber demais, fumar demais, trabalhar para o caixão, para a morte não nos apanhar desprevenidos, uma pessoa habitua-se ao fim de um certo tempo, e depois existe a colega, a possibilidade da promoção, o carro novo para pagar, quem me dera que fosse um BMW, agora sigo pela rua e vejo, no meio da névoa de Outubro, do lixo de domingo esvoaçando em redor, esse curso íntimo que a vida das pessoas leva, acaba por desaguar no mesmo grande rio, e depois no mesmo mar, esquecimento e submissão até ao último sopro de vida. Homens que lavam os carros e mulheres que coscuvilham às portas, casais que transportam as compras do hiper para casa, o cheque mingua e a partir do dia 20 os sogros financiam a educação dos netos, crianças que brincam nas ruas, nos parques de cimento, parece que a relva, o seu cheiro doce e verde, é coisa que escasseia nos tempos que correm, os adolescentes também andam perdidos por aí, fumam cigarros nos cantos, escondidos dos olhares escrutinadores dos pais, que fumam cigarros nos cantos escondidos dos olhares escrutinadores dos filhos, do marido, da mulher. Uma outra vida há-de palpitar noutro qualquer lugar, mas não aqui, aqui são sempre os mesmos que aos domingos se passeiam nas ruas, arrastando os cães ou os filhos, e estes cães e estes filhos são a metáfora ideal daquilo que na verdade eles carregam, e não carrego eu o mesmo, ou serei o único a perceber que aquilo que nos é dado é pouco, é tão frustrantemente pouco, parece que não, que assim eles não vêem as coisas, que adianta perorar sobre as mesmas coisas, assim não hei-de chegar aos cinquenta, tanta a preocupação, o stresse.
Quando vejo Júlia, julgo que é esse o nome dela, penso que não vale a pena, não vale a pena meter-me com mais uma triste alma habituada a suportar um homem que não escolheu amar, a isso foi imposta pela sociedade, que ironia, isso, culpa, culpa a sociedade, não és um indivíduo, não pensas por ti próprio, não tens controlo sobre a tua própria Vida? Se tivesse, responde o cínico, se tivesse teria tudo aquilo que aspiro a ter quando não tenho nada, agora, lembra-me um velho conto oriental, das mil e uma noites: o desejo só é verdadeiro quando não é satisfeito. Apenas a mão poderá tocar a rosa. É uma maneira de desviar a conversa daqui, ou será aqui a conversa que eu achei que valia a pena ter, para desviar-me do meu verdadeiro caminho, chegar a casa e tudo enfrentar?
Vi um filme, há muitos anos, na televisão. Vi um filme, nada de excepcional. Vim a saber que seria a Janela Indiscreta, do Hitchcock. No outro dia, passei por Júlia na rua. E agora, que passeio na tarde de um Domingo esquecido de Deus, lembro-me do que falámos. Ela sabe, quase que aposto. Olhou-me de lado e disse bom-dia, e eu rosnei qualquer coisa. Trinquei o cigarro e arranquei-o da boca com o dedo indicador e o polegar, atirei com força a beata para o chão. Trazia vestido o meu fato-de-treino azul-metalizado, senti-me ridículo no meu fato-de-treino azul-metalizado, ela puxou os cabelos oxigenados para trás das orelhas e sorriu. Parou a olhar para mim e eu repeti o que dissera, um rosnado surdo e rouco, como um louco. Voltei para casa e apalpei a minha mulher, fodemos contra a carpete da sala, já não o fazíamos há duas semanas, (o sexo, não o sexo na carpete da sala), fumei um cigarro e parei de pensar nas mamas a saltar para fora do vestido verde de Júlia.
Minto, não foi nada assim; passei por ela e atirei-lhe um sorriso sacana, ofereci-lhe lume para o cigarro que trazia na boca, apagado, e levei-a para casa, o marido estava fora, fizemos amor até o sol nascer.
Mijo contra a escola primária. Um pré-fabricado nojento coberto de gatafunhos e grafitos, lascas de madeira por todo o lado, tinta a soltar-se. Uma leve erecção enfeita-me o pénis, penso em Jimmy Stewart e sei que nem a minha mulher nem Júlia serão a Grace Kelly; começa a anoitecer, tenho de ir passear o cão.