Arquivo Fantasma
Tudo o que vale a pena não está aqui.



Aço


Tudo uma questão de seta desviada,
um ligeiro movimento antes do disparo, um
erro menor. E o que deu nisto,
a contingência, o infortúnio e cair do dia
sobre o Portinho, aquele sol, quando fomos lá
seguindo as palavras de Ruy Belo e deparamos
com o que haveríamos um dia de perder.

O que me lembro desse dia, e de outros,
de ti, pulmão de aço a dar-me ar para que possa existir
fora do aquário. Um desequilíbrio breve e arrisco o disparo,
uma morte. Miserável. Nada a fazer.

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Não há


Não há na inquietação
qualquer conforto, nenhuma substância
e no entanto
repouso nela, sou sem o acerto
de outros tempos e chego a duvidar
de que alguma vez tenha acertado.

As ideias começaram a apodrecer
os dias, e cada dia se tornou
o resto que tiramos da cesta de fruta
quando já nada há a fazer.

A recuperação, o ganho,
a escada inclinada que custa trepar,
os regressos que julgo impossíveis,
as distracções, os fins-de-semana
tentando manter a cabeça à tona de água,
outros regressos, sem nunca poder partir.

É um laço
onde descansa o pescoço,
os dias, pequenos charcos
recusados pela memória, ao largo de
um caminho que não conheço.

Recusa e desistência,
base rítmica de uma imposição.

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Adicionar


Adicionar amigos a uma chícara de café
pode trazer complicações de saúde aos amigos e
a nós, mas se o fizermos dentro de limites razoáveis
- praticando a caridade da abundância de convites, a diabetes da amizade virtual -
teremos a felicidade num pacote de açúcar,
e a namorada a quem o oferecemos é um extra,
uma benesse inesperada, um sol na nossa longa noite boreal.

Mas recusar, então, os pedidos, subtrair amigos à vida,
é o melhor que pode acontecer,
poder tornar as contigências tristes certezas e os copos
que deixamos de beber manchas alastrando,
até um dia em que as chaves não servem
e é demasiado tarde para as trocar. Tudo subtraído,
resta nada. É assim.

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Vende-se


Se eu tivesse aqui
a imagem da passada primavera
quando a certeza do sol abria ao mundo
- solene - um vasto mar,
na primeira visita que fizemos à praia,
vazia à excepção de um casal de namorados
escondido nas ervas altas da encosta
onde se erguia a casa solitária, aquela que será a nossa casa,
poderia invocar o momento que se seguiu,
quando subimos pelo passadiço de madeira e fomos, certamente
mais alegres do que o gelo restante permitia, a caminho
do café amplo e claro que se mantém aberto todo o ano,
e tu me perguntaste se imaginavas olhar um dia
o rasto que aquele barco imprimia no horizonte
ao teu lado, ao teu lado no ano em que morreríamos,
a poucos meses de distância um do outro, e lembraríamos
o dia em que regressámos à praia e vimos a casa
desabitada a que seria retirada a tabuleta "vende-se", e tu
me perguntaste, enquanto subíamos o passadiço de madeira,
se o amor era uma forma de ver o verso do tempo,
unir as duas pontas do fio nos dedos frios,
e achar que a imagem poderá estar aqui,
impressa numa simples folha de papel, barata e suja,
o negativo da passada primavera, a negro recortado, verdadeiro.

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Deus


A imagem, aquela fotografia -
sou quase eu - fala com a minha voz,
(assim recordo)
e escreve o meu nome
(a caligrafia menos segura, tremida)
e assume o que eu sou, a minha vida.

De onde estou agora - o poema, o lugar sagrado -
confirmo que a letra é minha; mas o poeta
é um fingidor - ensinaram-me.
O coração, tecido de mentira e ilusão, aceita
o crime. De tiro em tiro - no escuro, sempre no escuro -
a fome vai-se saciando, aceita a verdade.

Escrevendo contra o risco negro do firmamento
- o passeio que demos junto ao mar, era noite, noite funda,
e eu estava apaixonado e pensava no chão duro do teu amor -
arrisco menos, cada passo atravessa a curta distância de um rosto.

Fora de Deus, que habita a memória da viagem
que fizemos - a primeira, e penso agora na última -
encontramos o retrato útil à nossa história,
a imagem provisória que guardará a porta de casa.

E ninguém nos encontra - e de ti nascerá o nosso filho.

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Ao largo


A loucura de que és capaz para
sair de casa, enfrentar a multidão
e perder o sentido dos passos,
reencontrar a vertigem sobre o mar.

No mármore da casa-de-banho
ficou a tua pele, a mudança,
o animal de que te livraste,
na espera do que te saltará ao caminho.

O teu fim, o seu pulso, a medida
que te impele a picar o ponto,
repugnante, a repetição
diária, a faca sobre o osso.

Sobre o mar, a história que ouves
- alguns discos - noite dentro
da manhã, e dela eclode, belo pássaro,
o movimento soçobrando, a queda.

Nenhuma sombra segue a voz,
a técnica - meia-volta - a derrota,
o autocarro que apanhamos para casa,
primeiro do dia, último da noite;

passa ao largo de uma luz. A tua sorte.

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Canção de amor (primeira variação)


A respiração - diagnóstico para um corpo
a caminho do estertor, a vibração certa,
o arpejo horizontal, Deus regressado de viagem
e a porta aberta de casa quando
a amada ideia,
o dúctil objecto que desliza entre o indicador e o polegar,
na cadência regular das esferas,
se retrai e contorce e eu saboreio
no lençol frio a sobreposição da morte,
nesse duelo transitório;

inspirar, expirar,
a cinza da palavra soprada
r e s p i r a r
e a língua seca
sem que aquela familiar desilusão - dança, dança -
se apodere do sopro acelerado do teu corpo.

amo-te do fundo da ruína, a velha canção.

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Errar


Não fica,
no limite, nada por fazer,
dissemos a quem amamos
o que tínhamos de dizer,
escolhemos entre dúvidas
sempre a resposta certa,
e sempre errámos,
mas

se errar é adormecer
aconchegado por um novo dia
pelo qual toda a noite esperámos -
os cães ladrando
na distância, a bruma assentando na terra,
e um último carro na estrada
a caminho de casa -
gostava de poder errar
outra vez,
para no limite
poder olhar para as horas vincadas
pelo sono e achar que foram
a única vida que tive.

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Dylan


Quero ver-te nua
agora
estou a ouvir Bob Dylan
e quero ver-te nua
porque julgo amar-te
sem conhecer dicionário que tenha
uma definição satisfatória de amor
mas talvez querendo ver-te nua
ache que te ame porque
amo o santo lugar
de onde dizem que nasce a vida
com toda as palavras que a minha língua permite
- e a minha língua permite que sonhes, por isso é uma língua divina -
quero ver-te nua, o teu corpo a caminho da decadência
que eu amo
e vou amar
por toda a eternidade que a
a morte me permitir
quando já não puder amar
mas agora amo
o ângulo agudo do teu corpo
e a geometria exacta do teu corpo
com todas as linhas irregulares e imperfeições
de alma
amo-te porque apenas me consigo entender
e aos meus erros
amando-te
e por isso
quero ver-te nua
ao som de Bob Dylan
porque o amor
é o único egoísmo que se perdoa.

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