Alice, de Marco Martins
Algo de novo em Portugal, o marketing que tem acompanhado a passagem pelas salas de cinema do filme
Alice. Vimos o actor principal, Nuno Lopes, no Herman SIC, debates à volta do tema tratado, publicidade abundante e um destaque inusitado no
site da produtora, a Madragoa filmes. Mas esta máquina promocional não enjeita (pelo contrário) a caução artística do filme; para além do interesse comercial que a história pode ter, é evidenciada a excelente recepção crítica da obra, no estrangeiro como cá. Tudo isto, claro, tem as suas repercussões; não têm faltado as vozes que apontam os defeitos do objecto, as inabilidades no manejo do estreante realizador, Marco Martins. Injustas e invejosas, a meu ver.
O olhar de Marco Martins é de facto original, a destreza inegável. A história, que podia facilmente cair nas teias do melodrama, desenvolve-se seca e contida, sempre no limite do desespero, efeito que muito deve ao facies mudo de Nuno Lopes, exemplar na transfiguração, na metamorfose operada em relação a anteriores trabalhos. Beatriz Batarda, apesar da escassez de minutos em cena, consegue ser uma extensão do desempenho tenso do actor, é um pilar nas sequências em que ambos contracenam. Mas o trabalho dos actores (diga-se que os elogios se estendem aos secundários) apoia-se na direcção inteligente do realizador; cada sequência é esticada exactamente até ao limite, os cortes surgem no tempo certo, ampliando o desamparo das personagens. O exterior é um espelho do interior e denota o buraco-negro que se esconde no coração do pai e da mãe que sobrevivem ao desaparecimento da filha. Tem-se falado da cidade de Lisboa filmada como nunca o fora, matizada de cinzentos e negros, desprovida da luz que se tornou clichê imagético. As filmagens durante os meses de inverno e ao crepúsculo acentuam o carácter de uma metrópole cada vez mais desolada. O tema do filme acaba por ser apenas um pretexto para a demonstração de uma ideia: numa época de ruínas dentro de cidades, as pessoas vão-se sumindo no meio de paisagens frias, devastadas, o calor da cidade luminosa é memória, vestígio em perda. A ausência de que se fala não é apenas a de Alice, a filha que desapareceu. Fala-se também do vazio a que uma geração de urbanos, despojados da grande aldeia que em tempos foi Lisboa, se sujeitou. Marco Martins disse numa entrevista que o cinema português pouco lhe interessa, e isso é visível. Há ligações com a obra de Wong Kar-Wai, por exemplo, ideias plásticas, objectos, lugares que se assemelham: os comboios, o metro, os locais de convívio que são, mais que tudo, lugares de partilha de solidões.
Saliente-se, de resto, o aprumo técnico, desde a captação de som à fotografia e à montagem árida (adequada, portanto), e também os diálogos, naturais, verosímeis, distantes dos ecos teatrais, pomposos, característicos de um certo cinema português que, felizmente, se vai tornando peça de museu. Em suma, uma excelente estreia que promete novos rumos, um filme prenhe de qualidades e inovações formais que se saúdam, uma pedra no charco da monotonia cinematográfica nacional.