Tudo o que vale a pena não está aqui.



Um poema


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"O comboio correio das 10 da noite partia da
minha terra para Lisboa. Fui tantas vezes
com o meu pai levar as cartas. Esperávamos
na gare. Se havia chuva ouvíamos o apito
quando passava à Granja vindo de Óbidos e

depois de correr o vale de S. Mamede.
O que mais me seduzia era o seu peso o negro
da máquina o movimento do êmbolo a nuvem de vapor
correndo toda a gare. Chegava entre videiras e
pântanos. O chefe da estação de

bandeirinha verde dava o sinal de entrada. Era
o intenso barulho os ferros da travagem
o bater das portas as carruagens verdes
enegrecidas, os castanhos wagons. Máquinas de
carvão, a diesel depois. O degrau de madeira ao

longo da carruagem, a romano nas portas I, II, e
III.
Anos depois, já de mim se dizia «um homenzinho»
viajei nesse comboio das 10. Partia de
Coimbra, às cinco horas. Pelos campos do Mondego

a água, a matéria do ferro, confundi
com o caos. Reconheço neste comboio a forma
obscura, a intuição ridícula das imagens. A noite
corria de mistura com a triste lâmpada do
corredor, benefício do mistério, fogo fechado pela

trovoada sobre os campos do arroz, sobre o pinhal
de Leiria.
Viajava em segunda. Vinha para casa no natal.
Eu tinha um emblema, vermelho e branco dos suiços,
na lapela do sobretudo. O meu irmão, as mãos
gretadas das frieiras sob umas luvas azuis. No

banco em frente,
uma professora de geografia rezava o terço
atenta à formação do espírito científico nascente.
Descolorido amor humano,
fornalha de comboio, coração das coisas a noite
corria fora e dentro da carruagem verde.

Meu pai estava na gare.
A longa fita de cabedal para fechar, abrir as
janelas. A rede onde pousava as malas.
Os corridos brancos de madeira ficavam na III.
Um guarda republicano cerrava todas as

noites sobre o azul do capote a portinhola.
O traço do comboio separa o céu da terra sob as
estrelas
sob o limite da chama
a arte imita tanta vez a natureza."

Este poema de João Miguel Fernandes Jorge foi retirado do livro Uma Exposição. Ler arquivos de blogues dá nisto, apanhei uma referência a JMFJ na Seta Despedida e lembrei-me deste poema que tanto me disse em tempos. Os meus lugares de infância coincidem com os do poeta, o comboio também. A viagem recordada nem tanto, decidi embarcar pela primeira vez num comboio da linha do Oeste depois de deparar com as palavras de Fernandes Jorge. Ou não. Não confio na memória que distorce o real e o molda à medida do meu desejo das coisas. Encontro mais vivo em mim o eco do comboio-correio na distância, apitando por sobre os campos que me separavam (e à cama onde tentava conciliar sono e sonho) da linha que cruzava os arrozais resistentes de que o poeta fala. E, adormecendo daquele modo acossado pelo medo, sentia que um poema respirava longe, memória de um tempo que passara. Que passou.


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