Via-lhe o ventre com a crosta coagulada
e a melodia do peito, um fluxo em chaga,
donde parecia fugir a massa celular.
Despedia-me no quarto de refugo.
Era melhor esquecer o que diziam terapia.
As suspensões alienadas pelos tubos,
a tentativa de tudo o que é vão.
E fôra tanto de dia a dia e um amor
tão usual e nehum esperara
nas poucas noites longínquas
esse rasgão hospitalar.
O calor, o frio, a picada de qualquer
alfinete tresmalham-se pelas mãos em queda.
Nem eu sequer depois irei senti-los,
as alterações do que possa vibrar, o crescimento
dos nervos, as queimaduras, a dormência dos pés.
Ter de suportar assim o desaparecimento e já
estar a ver nele inapelável e igual o nosso
leva-nos para o último quarto.
Com os derradeiros instrumentos da coragem.
O X-acto aberto até à extremidade
retraça o sexo sem qualquer armistício,
jorros que pulsam parecem escrever
na cor das órbitas de fígado contaminado
o que fora a vida e o amor lhes fez.
Enterra a lâmina com a força de uma reza
do escroto
onde um ninho de verrugas se albergara
até onde o cóccix a detém.
Nessa prensa de sangue por todo o lado
se despedia da carga viral, os excrementos,
o efeito dos fármacos pousam nos lencóis
que os recolhem até nunca mais.
Com as formas desencontradas
a cabeça tomba para trás sobre nehum apoio
como se tão-só a coluna conservasse
ainda toda a grua de um homem
e apenas o deixasse tombar
quando até as cartilagens parecessem desfeitas.
E sem nenhum valor
a morte vem.
Tudo se transformou em história.
Um vírus que nos deixou entregues
ao anjo sem guarda.
Joaquim Manuel Magalhães, in Alta Noite em Alta Fraga. O real, é isso que querem na poesia? Ei-lo.