O amigo Franz #4
Arquivado sábado, junho 25, 2005 por Sérgio Lavos | E-mail this post
Torcendo o pescoço como se fosse uma toalha ensopada, Franz espreitava sobre o ombro, alguém o chamava. Um assobio agudo, irritante. Ninguém o chamava, afinal era apenas um assobio agudo e irritante. Quase sem dar por isso (fingia não ter dado por isso, apesar de tudo ele sabia) caminhara de cima para baixo, de baixo para cima, ao longo do muro caiado pelo sol, sete vezes. De todas as vezes, pensando em insignificantes coisas, pormenores sem importância, curtos relatos mentais de acontecimentos prováveis, ou hipotéticos, ou possivelmente sucedidos num passado do qual ele não tinha nenhuma memória. Havia um tique nervoso que Max já por mais de uma vez notara. Um quase imperceptível esgar da curva do lábio, do lado esquerdo do rosto, mesmo por baixo de uma sombra de cicatriz rosa. (E aqui, surgia a recordação: um dia de verão como os outros, e ele estava na praia. Ao abrir o colorido chapéu que espetara na areia, entalara de um modo pouco feliz o lábio na junção dos ferros. O sangue jorrara abundante. Lamentava que uma tragédia daquelas tivesse acontecido, mas Clara, a rapariga que afirmava ser a sua namorada, não. Dizia que a cicatriz o tornara mais bonito. Como um gelado derretendo ao calor do meio-dia.) Ninguém o chamara, era apenas um assobio agudo irritante. Um comboio aproximava-se. Mas ali não havia nenhuma estação, por isso Franz sabia que não corria o risco do comboio parar e levar com a torrente de pessoas saindo apressadas em direcção a casa. Se pudesse, Franz tinha suspirado. Ainda faltava tanto até chegar ao cimo da estrada. Porque não ouvia já o ruído quase apagado do outro lado do muro. Caminhava fugindo devagar, ignorando a gravidade da situação, do que acontecia do outro lado do muro. Ele próprio assobiava, assemelhando-se ao comboio que passava. Assim era mais fácil pensar.