Dois acontecimentos quase coincidentes no tempo, movendo-se no eixo que me apraz pensar com definidor da vida que se seguiu, ambos com implicações decisivas na construção daquilo que sou. Chegar a Lisboa, conhecer a poesia de Al Berto. Recordo o volume que comprei na livraria Portugal, ali para os lados do Chiado, um calhamaço amarelo com um fotografia estarrecedora na capa, um retrato encenado por Paulo Nozolino. Era "O Medo". Mais tarde, conheci o poeta de raspão numa feira do livro, pedi-lhe para assinar um livro, ele acedeu. Simples, sem mais divagações excedentárias. Vi-o algum tempo depois num programa de televisão (não consigo precisar qual) de rosto desfigurado. Pressenti algo tenebroso. Conhecia-lhe os poemas, julgava conhecer-lhe a vida. O Beno de Lunário seria o Alberto Raposo Pidwell Tavares? Assunto de pouca importância, enfim. Quando, meses depois, se confirmou o pior, pensei que seria simples, a explicação. Quase que senti alívio; convenci-me, em jeito de consolo, que a morte que lhe tinha calhado era o resultado de uma vida de contornos esbatidos. A doença, a tal doença de que fala Sontag, e parece que temo escrevê-la aqui, limito-me a seguir o que é norma neste país. Há uns tempos atrás,
Eduardo Pitta referiu-se de forma fugaz a este silenciamento que rodeia a morte de Al Berto. As publicações estrangeiras, no entanto, não são tão pudicas. Este ainda é o país da branda hipocrisia. Mas não queria seguir por aqui. A verdade é que a versão oficial durante muito tempo mencionou um cancro linfático como causa de morte. Confesso que quando li isto nos jornais a surpresa ainda foi maior. E uma vez mais fui traído por uma certa menoridade de espírito; não me parecia natural Al Berto ter morrido de uma doença que facilmente se associa à velhice, à decadência da carne. Seria mais natural que esta decadência fosse uma consequência natural de um mal que há muito tivesse envenenado o corpo, a imagem do jovem
beatnick (beautiful looser) encaixava melhor no preconceito existente. Acomodei-me ao engano, e senti alguma revolta pela versão errada dos factos que continua a circular nos meios oficiais portugueses. Alguém ousará (e quando) falar verdade, neste caso? Ou será que a condição marginal de Al Berto, ele que abertamente se afirmava como homossexual, continuará a silenciar a sua morte (e vida)? Sei que nada disto interessa, sei que a obra que deixou, apenas ela, poderá responder pela vida que levou. Mas nem isso é remédio bastante para que Al Berto seja resgatado de um certo esquecimento crítico a que tem sido votado. Marginal até depois de morrer, ainda que tenha sido o que mais próximo tivemos de um ícone
pop da literatura, comparável (à escala portuguesa, evidente) a um Jack Kerouac, por exemplo. A corrente que actualmente domina a crítica de poesia em Portugal é controlada à distância por alguém que em tempos se afastou da órbita de Al Berto, pista única para o estranho apagamento do poeta nos meios literários portugueses (com a excepção persistente de Manuel de Freitas, de quem acabou de sair um volume dedicado a Al Berto na Assírio e Alvim, "Me, Myself and I: Autobiografia e Imobilidade na poesia de Al Berto").
Alguns (muitos?) anos depois, continuo a admirar o que Al Berto escreveu, apesar dos defeitos que lhe encontro, das fragilidades que há dez anos atrás eram iludidas pelo deslumbramento do conhecimento inicial da poesia. A ingenuidade deste gosto é coisa que quero continuar a manter. Devo-lhe isso.