Não é que eu não desconfiasse já da arte moderna, mas às vezes é preciso ver a desconstrução que uma criança de quase 3 anos faz do mundo para nos apercebermos da relatividade dos valores que muitos julgam absolutos. Ontem, fui visitar o espólio do museu Berardo exposto no CCB. Logo à entrada, perto da bilheteira, vejo uma escultura não identificada (que julgo ser de Rui Chafes, também exposto no CCB) no mesmo local onde há uns meses era mostrada a obra de Beckett, "Film". O meu filho foge para lá e por momentos hesito no que devo fazer; evitar que ele interaja com a obra de arte, ou deixá-lo desfrutar a escultura, em todos os sentidos, assim completando o círculo de tempo que toda a manifestação artística deve ter? Deixo-o brincar, confesso que se apossou de mim um certo espírito rebelde. E o que é para ele aquele conjunto de placas metálicas alinhadas de um modo quase caótico, o que é que ele retira dali? Muito mais do que eu, admito. Onde eu via apenas chapa pintada de verde, ele viu livros, cadeiras, escorregas, pontes e castelos. A sério. E tornou a obra de arte lugar útil, lugar de brincadeira, atribuiu à escultura um valor lúdico, imagino que assim concretizando a ideia inicial de Rui Chafes. Por momentos, tornou a escultura parte dele e do seu mundo em permanente construção, o metal transformou-se em figuração de desejo e ganhou formas inusitadas, prolongamentos de um interior que ainda procura palavras para edificar o exterior. Eu, no meu canto, dei-me conta daquilo que perdi com o crescimento. Questionar a arte, esvaziando o seu conteúdo metafórico e simbólico, deixou-me mais pobre por dentro. Julguei conhecer razoavelmente bem as correntes, os movimentos, os artistas. Mas conhecerei verdadeiramente a arte? Imagino-me no lugar de um coleccionador em busca de novos artistas desconhecidos e deparo-me com um enigma insolúvel. Nos dias que correm, o que é a arte? Desde que esta se deixou de preocupar com a representação da realidade e enveredou por um caminho de interrogação, de questionamento do mundo e dela própria, que referentes é que podem definir absolutamente a obra de arte? Nenhuns, ou todos, o que cada um vê, repetindo o velho clichê? Bem, de qualquer modo posso estar enganado. A arte pode (?) ser apenas uma noção cultural, e portanto definida pela sociedade, ou parte dela, noção essa que uma criança ainda, felizmente, não possui. Enfiar nos museus o gosto de alguns e esperar que o resto de nós adquira esse gosto. Eis a arte. Usufruam dela.
Toilet Ready-Made, Marcel Duchamp
Nota: este texto é já uma segunda versão, a primeira continha dois erros de facto. Agradeço ao comentador a sugestão.