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Anatomia do desencontro #2


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No verão de 1903, em Barcelona respirava-se mal, um calor infernal queimava as ruas, um cheiro que se colava às roupas e à pele pairou durante semanas, e ninguém parecia conseguir descobrir a origem nem o modo de acabar com tal pestilência. Per Martis preparava a sua entrada na escola de Belas-Artes da cidade, e afincadamente trabalhava numa tela de grandes dimensões, todo o dia, todos os dias na arrecadação transformada em estúdio na casa dos seus avós. Afastado do bulício lento da cidade, Per conseguiu manter durante semanas e semanas um ritmo obstinado, nervoso, e o quadro foi ganhando corpo, as ideias formas, o instinto cores. Sentia que caminhava em terreno desconhecido, o que agora produzia era radicalmente diferente do que conseguira até então, nos métodos e na concretização; tudo era tão novo que Per imaginou-se a duvidar dos seus próprios méritos, evidentes desde tenra idade. Elogiado por todos os que o rodeavam, incluindo professores e dois tios com algumas tendências artísticas, adivinhara-se nele um caminho que apenas poderia passar pela pintura. É verdade que Per não se mostrava menos esforçado nas outras matérias de estudo, e se quisesse poderia sem dificuldade enveredar pela área dos estudos científicos, dado o gosto que tinha pelo rigor geométrico da matemática e a profunda curiosidade pelos mistérios do Céu. Estudara no ano anterior com incrível facilidade a obra de Newton, e secretamente ganhou uma afeição ao matemático inglês. Havia um fascinante mistério na vida do génio: a Per interessava sobretudo saber como chegara lá, que sopro estivera na origem de tal homem. Outras figuras provocavam nele semelhante admiração; mas não eram, todavia, figuras do seu mundo. Aos artistas, e às vidas que eles levavam, devotava Per um assombro desconfiado, sempre lhe parecera surpreendente a importância do acaso na criação de uma obra de arte. Leonardo da Vinci, por ser alguém que se interessava também pelo outro lado da criatividade humana, era o único pintor que estava neste panteão secreto de Per.
Decidiu descansar do esforço contínuo, certo dia em que o calor parecia querer conceder uma tréguas aos dias. Dirigiu-se à cidade, com a intenção de comer um bom almoço numa taverna do seu conhecimento, um antro escuro entalado entre duas ruas que se cruzavam no Bairro Gótico, perto da catedral. As sombras do interior esbatiam-se no sol quente do meio-dia, e enquanto Per bebericava um vinho tinto fresco e provava o bom presunto que Francisco, andaluz migrado, lhe trouxera, pensava no passo seguinte da sua tarefa. Raramente conseguia desviar a sua atenção do trabalho que tinha em mãos, e neste caso isso ainda mais evidente era. Havia um problema a resolver, e na sua cabeça revolviam possíveis soluções em catadupa; como representar as várias dimensões do espaço, ou mesmo daquilo que estava para além do espaço, como colocar numa tela a desmultiplicação que qualquer objecto sólido sofre ao ser observado pelo olho humano. Achava que havia um caminho para além da solução encontrada no Renascimento da representação a três dimensões, uma qualquer via, mais mental do plástica, e queria chegar ao fim do quadro com a solução descoberta. A refeição passou-a nestas elucubrações, e enquanto caminhava pelas ramblas, olhando os poucos transeuntes que se tinham atrevido a escapar à sesta, sentia muito perto o desvendar do problema. Umas crianças brincavam no passeio, saltavam, riam, coscuvilhavam. Abrandou o passo, e escutou as conversas. Por vezes, deixava-se tomar por uma nostalgia lenta, absurda talvez em alguém da sua idade. Era um desses momentos. Uma das crianças, uma menina com ar de cigana, cabelos de azeviche e olhos escuros escuros, passava uma folha a um rapaz mais pequeno. Ele escondeu-a rapidamente dentro das calças, não sem que Per antes divisasse o que lá estava desenhado. Os dois, seriam, de mãos dadas, cara de lado no traço ingénuo de criança, os olhos enganchados, dois num rosto e dois no outro, numa impossível distorção da realidade. O momento passou, e Per apressou o passo. Na urgência de terminar o quadro, quase que tropeçou ao chamar um trólei que passava.
Quando viu o fumo, primeiro, depois as chamas, o fogo destruindo a sua juventude, não pensou nos avós presos numa armadilha mortal na casa ao lado do estúdio onde desaparecia para sempre a sua obra. Correu em desvario, irrompendo pela porta da arrecadação que já ruía, comida pelo fogo, e foi procurar todos os quadros, guardados a um canto do estúdio. A última coisa que sentiu antes de cair no chão, derrubado pelo fogo, foi aquele cheiro doentio que nas últimas semanas pairara sobre a cidade. Era um cheiro a peste que chegava.


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