Não sei se já notaram, mas aqui é uma zona de fantasmas. O nome é apenas uma pista. Por definição, o que é um fantasma? Uma aparição tão rápida que depois de acontecer nos deixa na dúvida: vimos ou não vimos? Uma das coisas que mais nos facilita a vida é a possibilidade de repetição na Natureza. Os fenómenos persistem no tempo prolongando-o, podemos sempre confirmar o que vemos, e assim acreditarmos em nós próprios. É um mundo de crenças, portanto. Aceitamos que os nossos sentidos não mentem e, mais incrível ainda, vivemos sabendo que a memória é uma coisa fiável. Como o calor do nosso corpo ou a reacção multiplicada de um beijo na pele dos lábios ou uma picada de agulha na carne.
Aquilo em cima é o ponto um. De seguida quero falar dos fantasmas que rondam esta casa. Estamos a falar de coisas fugazes, que ao nascer estão já marcadas, destinadas ao desaparecimento. Não querendo falar do amor, o mais impossível dos fenómenos, porque improvável, porque anti-humano, vou-me deter na escrita. No universo das infinitas definições que foram sendo inventadas ao longo do tempo, da marca na água, do traço no deserto, do grito no vento, enfim, essas coisas que são vulgarmente conhecidas como lugar-comum, há um tipo de palavra que ainda de forma mais marcada é breve, morrente. Lá está, escrita blogosférica. Uma traição, é o que eu digo, à pureza do diário. Transportar para o mundo da virtualidade dupla uma coisa que devia ser íntima, encerrada dentro do corpo, miserável traição. Atribuir a essa coisa da alma o cunho da virtualidade, transitoriedade sem remédio, traição dobrada.
Ainda não falei dos fantasmas. A cada passo me desvio mais do caminho. Facto um: eu a cada passo me desvio mais do caminho. Já repararam que por vezes desaparecem objectos nesta casa? Sonharam que viram que estavam observando o movimento na margem da imagem que tremia? Não é isto um fantasma?
Ainda não falei dos fantasmas.
Há aquela história do homem que sonha outro homem sendo sonhado por outro. Abominável traição à natureza humana. Eu conheço outra história ainda, a do homem que no limite da razão julgou regressar no tempo (dupla virtualidade) e matar Berkeley, o maldito. Ou daquele que aceitou que usando apenas a sua força de vontade podia apagar os fantasmas que assombravam a casa, lhe entravam no sono e lhe carcomiam as entranhas.
Outro resultado da máscara cobrindo o rosto do fantasma. Palavras esbatendo na vidraça, água limpando metáforas.
Quando crescemos, obrigam-nos a acreditar em coisas atrozes. Esventrar o animal é ir esquecendo todas estas coisas se se aninham em buracos obscuros do corpo, retalhá-lo até ao osso é apagar de vez o lume da crença que como uma faca se espeta nas costas. A traição. Os fantasmas habitam aqui, e por vezes há coisas que aparecem. E desaparecem.
Quando comecei a escrever julgava deixar aqui uma ideia, clara, sem sombras. Vi esboçar de movimento, rápidos clarões, fogachos. Algumas palavras que foram usadas eram as que eu esperava usar. Julgo ter visto o fantasma que me foge, mas não tenho a certeza. Como escrevi, é isso um fantasma. Coisas que se vêem não se vendo, passo em falso, dúvida metódica, hesitação desdobrando-se pelo tempo fora.