O mais reconfortante na viagem é a sensação de movimento parado. Nisto, assemelha-se a um filme projectado na tela. Do nosso assento, vemos a paisagem mudar, os objectos tornarem-se vultos difusos, os contornos dos desenhos inscritos contra o céu esbaterem-se, a linha transformar-se em côr, a forma em esboço, a matéria em sombra. Se no enlevo do movimento deixarmos o corpo adormecer os sentidos, se nos esquecermos de atribuir sentido aos objectos que passam, o truque é inevitável. Tudo é então interior, e damos por nós sendo transportados num espaço parado que se movimenta. Imagine-se um universo onde apenas acontece o presente. E onde o futuro é o que acontece no movimento de avanço do exterior desse universo. Estamos parados no tempo, mas o espaço move-se connosco lá dentro. Em
2046, o filme que deveria ter aparecido
aqui, o escritor viaja de comboio em direcção ao esquecimento, o lugar de onde não pode regressar. Mas a viagem parece não ter fim, o escritor perde-se no meio-tempo entre memória e esquecimento, o medo de esquecer é mais intenso do que a dor de lembrar. Há outro filme que agora me surge:
Eternal Sunshine of the Spotless Mind. Aí, o desejo de esquecer concretiza-se. Contudo, este desejo revela-se uma má decisão, a que se segue (como quase sempre) o arrependimento. E entre este sofrimento auto-infligido e a indiferença de um amor que se dilui no tempo, a escolha é evidente. Voltemos ao escritor de "2046". Ele perdeu-se nesta indecisão. O amor que não chegou a alcançar em
In The Mood For Love (primeira parte do díptico de Wong Kar-Wai) persiste apenas porque lhe falta atingir o pleno brilho, aquilo que antecede a inevitável decadência.
Sonho alcançar a perfeita suspensão do mundo no comboio que me transporta para longe. Há filmes que são como uma viagem que regressa, a memória da viagem que se repete e das imagens que se inscrevem na realidade, como se esta fosse a projecção de um filme, e não o seu contrário.