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Director's Cut #11


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O Fiel Jardineiro, de Fernando Meirelles

Quase que consigo adivinhar o que a pandilha de comentadores neocons que por aí escrevem tem a dizer sobre cada assunto que esteja na ordem do dia. A propósito disto, queria chamar a atenção para um texto que diz tudo o que eu queria dizer. Mas falemos de coisas sérias.

Cinema, por exemplo. Ontem, ao ver O Fiel Jardineiro, de Fernando Meirelles, aprendi uma ou outra coisa. Num cine-teatro com nome de whiskey (sinal dos tempos) quase vazio, vi desfilar à minha frente um dos mais belos filmes do ano (e uso a palavra "belo" no mesmo sentido em que Truffaut a usou referindo-se a Aurora, porque não?). História de amor disfarçada de thriller disfarçado de filme de intriga política disfarçado de épico minimalista sobre a presença colonial tardia dos países ocidentais em África. Esqueçam, não é nada disto. Deixemos a superlatividade de lado. O filme é uma denúncia feroz de um capitalismo que explora milhões, um capitalismo que não se coíbe de vender a preços impraticáveis medicamentos para o combate à SIDA, praga que dizima populações inteiras, ao ponto por exemplo de, na África do Sul, a maior parte da população adulta entre os 30 e os 45 anos ser seropositiva. Mas a doença de que se fala no filme é a tuberculose, na sua versão multi-resistente a antibióticos, ameaça verdadeira que passa ao lado das manchetes porque pode atingir a metade do mundo que a boa consciência dos brancos prefere esquecer, recorrendo a paliativos disfarçados de ajuda humanitária ou concertos rock que ajudam a vender discos e pouco mais. A verdade é que a vida humana tem um valor diferente em África. Ditaduras sanguinárias, fome e seca extremas, genocídio, tudo é possível neste lugar esquecido por Deus. O olhar de Meirelles, realizador com consciência social, apenas podia ser de denúncia, de engagement, palavra que hoje é (infelizmente) estigma. Li alguns textos desprovidos de entusiasmo em blogues, e pensara que, enfim, uma obra com falhas, tinha achado que as reticências colocadas seriam de ordem estética. Até há quem diga preferir que tivesse sido um realizador do calibre de Sidney Pollack a dirigir a adaptação do romance de John Le Carré, preferência que com certeza terá que ver com o sobrevalorizado África Minha, e está tudo dito. Depois de ter visto o filme, percebi porquê. Deve ser isto a tal luta ideológica de que alguma direita fala, a tal guerra cultural entre direita e esquerda. Filme com consciência, ainda que não seja propaganda pura (como é o caso dos filmes de Michael Moore) é desvalorizado, sem remissão. O olhar do espectador (e de alguns críticos) está imediatamente condicionado à partida pela ideologia. Também poderia eu cair no mesmo erro, é verdade, e provavelmente caio, mas tenho uma coisa que joga a meu favor: a realidade que coincide ao milímetro com a ficção.

Mas a beleza do filme passa pela sua quase perfeição, no sentido em que consegue veicular sem mácula a ideia que precede a sua materialização. Meirelles alia o empenhamento social ao fôlego de uma história de amor trágica. Em relação ao anterior Cidade de Deus, a câmara ganha serenidade e a acção estende-se, o tempo prolonga-se em cada plano, a montagem respira de outro modo. O nervosismo da câmara apenas se evidencia quando o olhar do realizador se passeia por uma gigantesca favela em Nairobi. Há uma sequência que serve de exemplo a esta afirmação: quando, depois de uma troca de palavras entre um diplomata e um espião enquanto se joga golfe (um jogo definidor de status, por excelência), a câmara dá uma volta de 180º e se fixa durante alguns segundos naquilo que está fora de campo, fora do mundo artificialmente intocado dos ingleses que vivem no Quénia; a favela, pintada de cores quentes que contrastam de forma violenta com o verde imaculado do green. E o que se discute enquanto se joga golfe no éden? As vidas dos milhões que vivem a 100 metros, condenados a uma miséria sem remédio.

E depois, há os actores, Ralph Fiennes à cabeça. O diplomata que apenas se apercebe do que perdeu depois de a mulher (Rachel Weisz) ser assassinada em consequência da investigação perigosa em que estava envolvida. A sequência do regresso à casa onde os dois viveram é das mais tocantes a que assisti nos últimos anos. Quando o diplomata finalmente se liberta do colete-de-forças auto-imposto, e recorda, a câmara espreitando de dentro da casa - o passado perdido - para fora, Fiennes em convulsão a caminho de um fim que se torna inevitável, trágico e redentor. O final de que falo também ele é filmado de modo superior, e sabemos que estamos perante um grande filme. Que a consciência pesada de alguns tende a menosprezar por razões secundárias. Ainda que essas razões secundárias sejam o motor da acção, assim como a motivação que preside a todo o trabalho de Meirelles. John Le Carré, o espião desiludido com o andamento do mundo (e, já se sabe, na boca de alguns anti-americano primário) gostou do filme. Percebe-se porquê.

(Repare-se nas cores do fotograma lá em cima. O deserto, como n'O Paciente Inglês. Obras que se tocam.)

IMDB: Link aqui.


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