Faca e Alguidar (2) - Um Conto de Natal
Arquivado sexta-feira, dezembro 24, 2004 por Sérgio Lavos | E-mail this post
O bacalhau estava de molho há cinco dias, e cheirava mal, muito mal. Alzira, sentada à janela, pensava no jantar e na sogra, mais na segunda do que no primeiro, como a haveria de contentar, a velha rançosa. Não é que ela tivesse mau íntimo, mas a verdade é que o bacalhau tresandava. Tirou um cigarro LM Lights amarrotado do bolso da bata e acendeu-o. Os putos haviam de chegar daí a meia-hora, e precisava de falar com a Carla. Adiou uma vez mais o que tinha de fazer, e pegou no telemóvel. Chovia, lá fora. "E então, como é que estás?"(...)"A sério? E o que é que vais fazer?"(...)"Toma os comprimidos, se não conseguires dormir."(...)"Oh, pá, tira-lhe a Internet!"(...)"É como eu te digo, são uns porcos..."(...)"E o bacalhau, já começaste a fazer?"(...)"Ia agora começar, a minha sogra está aqui daqui a duas horas, e tu sabes o que é que eu acho da puta, mas o Manel insistiu..."(...)"Tá, tá, desliga lá, até logo." Apagou o cigarro num cinzeiro improvisado de papel e foi enfiar as mãos no alguidar do bacalhau. A consistência viscosa do peixe incomodava-a, a água fria entrava-lhe pelos ossos e não tinha vontade nenhuma de cozinhar, não hoje, não assim. Chegou-se ao pé da janela, de alguidar na mão, e atirou o bacalhau para a rua. Lá em baixo, o peixe espalhou-se manchando a sujidade do alcatrão, parecia que ressuscitara por momentos, algum milagre de Natal. Saiu porta fora e desceu as escadas, decidira que não valia a pena trazer os Valiums, levava apenas a roupa que trazia vestida. Encontraram-na cinco dias depois a boiar no rio, o rosto inchado como um peixe morto.