Tudo o que vale a pena não está aqui.



Faca e Alguidar


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Mulher-a-dias, na casa dos quarenta, foi encontrada morta aos pés do seu amante, deitando pela boca tripas e sangue. O homem, também na casa dos quarenta, foi levado de seguida para a esquadra da PSP da Damaia, onde se encontra neste momento em prisão preventiva decretada pelo tribunal, a aguardar julgamento. Não se lamentam mais mortes. Os filhos estão bem, à guarda dos avós maternos, já deixaram de chorar há muitas horas. As razões que levaram a este crime brutal são ainda desconhecidas, mas julga-se que a morta andava a amar o marido nas costas do amante. Desde há dois meses que os seus movimentos eram suspeitos. Levantava-se feliz, ia pôr os miúdos à creche, depois trabalhava o dia todo na senhora com um sorriso nos lábios. Voltara a ver telenovelas, deixara de ser vista a rondar o teatro de Benfica, em dias de saraus de poesia. O último livro que tentara ler tinha-o deixado a meio. Desistira do Fazes-me Falta e voltou com prazer à Maria e à Telenovelas, parecia que um grande abismo se fechara debaixo dos pés. O Continente do Colombo também voltara à rotina do fim-de-semana; todos os Sábados era vista, na companhia do marido e dos filhos, a passear no centro. Chegava mesmo a ir ao MacDonald's e comprava menus infantis para as crianças e Big Macs para ela e para o marido, e entretinha-se depois a ver as montras, um sorriso sempre a pairar nos lábios. Quando os inspectores olharam para o rosto dela, esse sorriso ainda se tentava manter suspenso num presente passado. Julga-se que o amante, o que a tinha levado a ver o pôr-do-sol do Tejo há um ano, a apanhou à traição. Ao espetar a faca nas costas, ardia-lhe na alma aquele sorriso mundano, simples, de abandono. Queria-a ter para sempre nos versos que lhe lera, doía-lhe a coragem do regresso.


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