Surgia de rompante, assustava os tratadores, ainda que eles não o temessem. Os seus movimentos eram fluidos, esguios, certeiros. Procedia como se a casa lhe pertencesse, mas a casa continuava inacessível, não a possuía. Havia vastas áreas vedadas ao seu conhecimento, sítios mal-iluminados, corredores encerrados em si próprios. Os tratadores também não o podiam ajudar. Estavam confinados ao salão, as portas esquivavam-se ao contacto das mãos, por vezes a casa amanhecia sem entradas nem saídas, as paredes cobriam-se de desígnios mudos, escondiam-se dos olhares que as procuravam. O que poderiam eles fazer, no fundo? Apenas vigiar-lhe os gestos, as intenções, observar as infinitas incursões que fazia pela casa, as decepções, as desistências. Havia dias em que ele os ignorava, desenhava um rosto triste que cobria os cantos do salão. As sombras, nestes dias, dormiam atemorizadas numa pequena divisão ao fundo do salão, a única que tinha uma porta que estava sempre aberta. Os seus saltos iam mais alto, elas escondiam-se e sonhavam com uma casa onde os corpos não crescessem vindos do nada, onde ele não habitasse, um mundo exilado do mundo.
Como definiam a leveza dos passos pela casa, a discreta presença traçada nas paredes, nos retratos, nos espelhos? A imagem que ele desenhava era apagada no momento seguinte, o seu corpo apenas existia depois do vulto desaparecer, era uma ideia do que restava, os tratadores apenas podiam tentar adivinhar o rasto invisível que deixava. E tudo era mais sumido ainda quando a tristeza o feria. Uma linha azul, uma marca líquida derretendo a neve, um fio de lume brando evocando o degelo. Os tratadores teciam conjecturas durante estes períodos de apagamento, falavam entre si sobre as razões das mudanças repentinas, arriscavam procurar nos corredores mais escuros da casa aquela sombra viva que desaparecia. Eles sabiam que ele não conseguia compreender parte da casa, mas entre cada episódio de desvanecimento convenciam-se de que a fraqueza era superada, e que tudo o que era obscuro fora, de algum modo, iluminado. Esta confiança não era imerecida. O tigre lutava, com todas as forças que podia, para desvendar o segredo inacessível da casa. Mas nunca conseguira chegar perto. No entanto, não era a impotência que o transportava à morada melancólica do silêncio. Era algo mais profundo, inexplicável.
A matéria de que era feita a sua melancolia era tão veloz como o corpo do tigre fugindo pela casa. Portanto, não tinha uma origem definida. Quando reparava nos contornos da sua sombra, já ela se estendia pelas paredes, perdendo-se nos ângulos dos corredores, diluindo-se nos quartos abertos enclausurados no abismo nocturno, assemelhando-se ao silêncio que diariamente amortalhava a casa, durante a hora mortal. Ele procurava nos recantos do espírito a fonte de onde jorrara a luz cinzenta, mas de cada vez que as mãos do seu entendimento julgavam segurar entre os dedos o coração negro das coisas, tudo estremecia e no momento seguinte, desaparecia completamente, restava apenas uma fogueira apagada e cercada pelo frio do esquecimento. Seria da memória, do seu poder incontrolável? Se outro fosse possuído pela melancolia negra, poderia se libertar e descobrir a razão para a indesejada possessão? O tigre sonhava com a juventude, e com a força que ele pensava que, em tempos, derrotara a vaga azul que o assaltava. Culpava, desse modo, a velhice. Mas outra voz, nesse momento, lhe dizia, ainda não és velho, mas desejas sê-lo, sonhas com a sabedoria, ou a loucura, que a velhice te trará; perderás a velocidade, a força, mas ganharás a serena tensão dos insones, os que não conseguem conciliar a vida com a noite. Resignava-se ao sofrimento, na esperança de que o conhecimento, algum dia, o matasse.
O espaço onde a melancolia respirava. Longe, longe de toda a luz, do olhar vigilante dos tratadores, bem escondido da curiosidade dos visitantes ocasionais, o lugar onde a morte não entrava: a biblioteca. Ele, o tigre, era o único que conhecia o segredo. Em tempos, perdera-se. Uma viagem que desembocara no vazio, um corredor fechado no silêncio escuro da casa. Apenas uma ténue sombra de claridade, um vestígio que rasgava o denso vazio de séculos. Hesitou, naquele momento. O coração sobressaltou-se mais ainda. Parecia partir do seu peito. Olhou o pêlo, temeu o fim de tudo. Que ele não era imortal, sabia-o bem. Quando deu um passo em frente, recuou, no mesmo impulso. Intuía naquela luz um prodígio. Porém, a coragem parecia abandoná-lo. Esforçou-se. Pensou na floresta, nos seus labirintos ameaçadores. Em todos os perigos que rondavam o seu tempo da infância. O estremecimento que sentia quando deixava de avistar sua mãe, a desorientação quando alguma folhagem mais tenaz aparecia ao caminho. Puro terror momentâneo. Um momento esticando seu corpo ao sol, espreguiçando-se.
Mas acabou por avançar, alguém o esperava.
Não conseguiu de início vislumbrar mais que um movimento furtivo na penumbra. Pensou que, se esperasse um pouco, os seus olhos acabariam por se habituar à escuridão. Estranho, o medo desaparecera. Sentia uma inesperada segurança, o seu corpo relaxara, quase não ouvia o coração por baixo do pêlo. Em redor, a sala revelava-se. Estantes ocupavam as quatro paredes da divisão, crescendo até ao tecto. Não havia um espaço vazio nas prateleiras, livros de vários tamanhos, idades, acumulavam-se, alguns de modo desordenado, outros perfeitamente encaixados na madeira. Uma poeira transfigurada pela claridade que ressumava por trás dele pairava por todo o lado, e um cheiro morto, a tempo ultrapassado pelo tempo, colara-se ao corpo. Passados alguns minutos, o tigre continuava imóvel. Pressentia que algo vivia no movimento que notara ao entrar. Não, não voltara a sentir medo, mas uma súbita falta de vontade tolhia-o. Empurrou a porta atrás de si um pouco mais, e um pouco mais de luz invadiu a escuridão. O canto escondido surgia. Via, finalmente.
Uma sombra declinando sua voz na sombra, ou um vestígio de vulto derramado nas paredes da sala. Mas nem tudo era ilusão e apagamento, o tigre focou o seu olhar e a imagem ganhou uma nitidez iluminada. Daquele monte de cinza branca emanava a sabedoria. Não era um livro, não era como um velho sábio espalhando sábias frases ao vento, era como se a sombra concentrasse em si uma palavra de cada frase escrita desde sempre, e cada palavra tivesse dez, cem, mil, significados diferentes, era como se as palavras fossem um poço de luz sugando o conhecimento do mundo num momento, e no momento seguinte (que podia durar uma eternidade) oferecessem de volta este conhecimento na forma de uma criança/tábua-rasa no preciso segundo em que a acumulação do mundo se inicia, instantes depois do banho purificador da passagem. E é como se a criança fosse despojada do fardo da memória, e existisse apenas num eterno presente paralelo ao mundo onde apenas o passado se sucede aos dias. O tigre deixara de ser tigre e descobria-se outra coisa neste rio de simultaneadade súbita. Renascera.
(Continua)