Primeiro o vermelho. Meia lata de vermelho, uma grande mancha de vermelho alastrando pela tela, preenchendo tudo como um cancro, um enorme vermelho que embebe, suga o pano, suga as outras cores da casa, puxa-as para junto de si, para o tecido cru, o vermelho é uma cor solitária. Aparece sempre à noite, em alguma rua escura, quando se torna um vermelho cinzento-escuro, um vermelho de filme de matiné de aldeia. Porque é uma cor solitária, precisa de outras dentro de si, por isso convida-as para o crime. Depois os contornos da coisa vão-se tornando mais definidos. Começamos a poder fazer cálculos sobre o resultado final, do crime de cor que nos espera, do centro de respiração do Universo, do seu buraco branco. E tudo ficará ali, todas as coisas, o princípio do mundo e o que veio depois dele, Adão, Eva, a Arca, tudo, e as inundações, e as pragas, e o amor, oh, o amor, a guerra, o ódio, um beijo, as coisas simples que o vermelho também tem. A luz das casas à noite, o fumo espiralando indolente no gume nocturno, o cheiro do fumo entrando nas casas, o frio que foge do inverno, e o calor que faz quando as duas primeiras línguas se tocam, o gosto do sal, na ponta dos dedos, a vertigem do verde amanhecendo pelos olhos dentro, o verde rumoroso das manhãs de neblina, as gotículas de luz caindo na lã do casaco, nas mãos, nas maçãs vermelhas do inverno, o vermelho do prazer de uma brincadeira no vão da escada, o prazer dos corpos também, o mergulho vertinoso no amor, a sua tontura, tem o mundo de pernas para o ar e o fumo de um cigarro, a langorosa investida do álcool no cérebro, o vermelho tem o toque do filho, o toque de Abel em Adão, a ferida incandescente, como ferro em brasa, no ventre materno, tem o vermelho de um grito liberto de água, pleno de ar, tem essa linha fina em que nos vamos mantendo. É isto que eu quero, será pedir muito, enfiar tudo isto no meu quadro, ser uma tela imensa de onde o mundo pudesse nascer, se expandir?
Mark Rothko