Para Philip Roth, a Pastoral Americana é o sonho do estrangeiro que de fora olha para a América, e deseja-a, mais do que o sonho do americano de há muitas gerações. Este, entrado numa decadência de séculos, olha para o outro com desconfiança, e por isso renega o que o outro deseja. Roth escreve como se louvasse o american way of life, armado com o cinismo do intelectual que vislumbrou a ruína de uma sociedade, e tece uma teia de cumplicidades com o herói tragicómico do romance, o Sueco Levov, dedica-lhe uma ode triunfal para a seguir o demolir sem piedade. Atenção, falo de Roth, mas poderia estar a falar de Nathan Zuckerman, o narrador. Pouco interesse terá a semelhança biográfica; este narrador que emerge na (curtíssima) primeira parte do livro esconde-se na segunda, deixa que a figura de Levov ocupe o palco, e com ele toda uma geração de americanos que entrou em colapso a partir dos anos 60. Porque também se fala disso. Da revolução sexual que se transformou em revolução de costumes, e dos valores que foram substituídos na passagem de geração. E do Viename, sempre o Vietname. A filha de Levov, Merry, criada (e termo mais correcto seria difícil de encontrar) com todo o conforto, compreensão, amada por pais perfeitos, ele o melhor atleta do liceu, ela quase Miss USA, Merry, cujo único defeito é uma gaguez que teima em não desaparecer, Merry, a obstinada e inteligente menina rica filha de um judeu e de uma católica (facto não dispiciendo para a compreensão da história), a filha perfeita que degenera e se torna terrorista, assassina, fugitiva e para sempre perdida. A reacção de Merry é mais do que rebeldia contra a figura paterna, e muito menos será uma consequência do pequeno erro cometido por Levov quando Merry tem doze anos, o beijo roubado exigido por uma filha apaixonada pelo pai. Merry simboliza todos os que vêem no governo dos E.U.A. o inimigo, e que contra ele decidiram levantar a sua revolta, personaliza no fundo aqueles que lutaram pelos direitos dos negros e contra a intervenção americana no mundo. Esta luta trágica ganha contornos edipianos; a América que permite a liberdade de manifestação, de protesto, vê-se ultrapassada pelos seus filhos. Estes não podem deixar de amar o país onde nasceram, ainda que gritem nas ruas o seu ódio ao capitalismo e ao imperalismo americano. Fábula? Quarenta anos depois, as premissas terão mudado? A incompreensão do sueco Levov perante os actos de Merry é um espelho da atitude da América em relação a si própria. O atentado de Timothy McVeigh, na mente de Roth ao escrever o romance, foi o primeiro sinal. O 11 de Setembro foi a inevitável conclusão deste processo de fuga para a frente, da recusa de reconhecer e compreender as causas dos fenómenos que aparecem como resposta ao domínio americano no mundo. Mas este tipo de especulação não pertence aqui. A obra de Philip Roth possui um fôlego de epopeia, mas nunca deixa o leitor descansado nas suas ideias. Noções maniqueístas são abandonadas, passa por aqui a grande virtude do livro. O grande herói americano, o sueco Levov, morre sem perceber o que o atingiu. A América, de olhos postos no mundo, ainda não acordou para a solidão que o poder traz. Também ela ainda não percebeu quem chocou contra o World Trade Center em 11 de Setembro de 2001. As ruínas erguem-se devagar.
Pastoral Americana, de Philip Roth. Editado pela Dom Quixote, traduzido (com algumas gralhas e erros evitáveis) por Maria João Delgado e Luisa Feijó.