Aprendi o que era a moral nas aulas de Religião e Moral, sem saber que aquilo que me estava a ser impigido era apenas o pensamento único dominante, a ética de raiz cristã, inspirada directamente pela Bíblia. Mais tarde, quando comecei a suspeitar daquilo a que chamavam fé, fui-me dando conta que afinal o que era considerado certo para a grande maioria das pessoas poderia ser errado para uns poucos, pelo menos na sociedade onde cresci. Desconhecia a diferença entre moral e ética, porque a primeira sempre me foi ensinada como se fosse a segunda. Mas quando cheguei ao ponto de ter deixado de acreditar em qualquer deus (e portanto preparado para receber a qualquer momento a chamada "revelação da fé", devo dizer, sem ironias), também comecei a perceber que havia um grupo (palavra fundamental para aquilo que quero dizer) de pessoas que desconhecia por completo a cultura onde eu havia crescido, e nem por isso eram menos humanos, nem por isso mereciam menos o "paraíso", se acaso este existisse. Distinguir moral e ética foi apenas o princípio para a minha definição enquanto ser humano. Foi isso que me permitiu descartar todos os preconceitos que a moral de uma determinada religião pode ter e aproveitar apenas os bons ensinamentos que essa religião produz. Este separar das águas levou-me também a criar a minha ética pessoal, regida por princípios firmes (ainda que por vezes, dolorosamente, tenha que os dobrar um pouco), e hoje posso afirmar que o meu pensamento, a minha visão do mundo, não estão enfermos de preconceitos, dogmas apriorísticos e superioridade moral arrogante, pecadilhos infelizmente comuns a muitos dos que se definem como crentes. Não, não me estou a afirmar como superior, de algum modo, aos que acreditam em deus, apenas reafirmo a minha independência de pensamento em relação a qualquer lei que não seja dos homens. Não descurando, é claro, o peso de uma cultura com milhares de anos, aquilo que Nietzsche, um pouco desesperadamente, tentou fazer na sua obra. Não me interessa ser anti-alguma coisa, apenas quero ser pró-qualquer coisa; o meu modo de agir não é reactivo, procura ser apenas construtivo no dia-a-dia, sem cegueiras de qualquer espécie.
Vem isto a propósito do que se tem dito e escrito sobre os tempos que por nós estão a passar, dominados por uma tensão indefinida, por um medo do outro, por uma demarcação feroz, violenta, de culturas, de grupos. Pertencer a um grupo é a base da construção de qualquer Homem, pertencemos a grupos porque a isso estamos condenados, desde o nascimento. Os elementos do grupo onde estamos inseridos são ao mesmo tempo as paredes que sustentam a nossa existência e o espelho onde vemos reflectido o nosso melhor ou o nosso pior, um espelho do interior que nos vai guiando na vida. Não quero falar de religião, porque o que está a acontecer pouco tem a ver com ela. Ou melhor, ela é apenas um pretexto, um código usado pelos dois grupos simbolizando as diferenças que os separam. Por baixo disto, apenas existe uma luta pela sobrevivência do grupo. Uma cultura vence a outra, e a outra reage. Um grupo tenta impor o seu ponto de vista ao outro, forças de impacto, de fricção, fazem vacilar por momentos as convicções daqueles que tentam a todo o custo manter a união entre grupos; o barco já esteve mais longe de ir ao fundo. Nestas coisas, já se sabe, vence sempre o mais forte. É teoria aceite que o terrorismo islâmico é o último estertor de um mundo em agonia, a agressão de que os propagandistas ocidentais falam é apenas uma maneira de cerrar as fileiras em torno de um objectivo comum. Ao mundo, dizem: "A sobrevivência dos valores que regem a nossa sociedade". O que não sabem, ou mais provável, não querem dizer, é que o objectivo final é o extermínio do outro. Ou das ideias do outro. E isto, não esquecendo a minha linha de raciocínio, é válido para os dois lados. No momento em que os valores ocidentais se tenham firmemente implantado no mundo islâmico, podemos dizer: vencemos.
Dito isto, o que é a moral, então? Que palavra é essa, que agora surge, pela voz do papagaio José Manuel Fernandes, por exemplo, ou de outros que se colocam na jangada gloriosa dos seguidores da vanguarda do mundo ocidental? Moral é essa coisa dúbia que apaga os mortos do outro lado e realça, com a ajuda do bombardeamento mediático diário, os que acontecem do nosso. Moral é o pilar que permite afirmar, sem rebuço, que nós somos os bons, e eles, os maus, porque nos querem matar. E nós, não os queremos matar a eles? Tão simples que até uma criança podia perceber. Moral é aquilo que relativiza números, factos, manipula dados para servir os interesses do nosso grupo. Mas eu percebo isto. Percebo porque também cresci aqui, pertenço ao grupo. Percebo a manipulação, percebo aqueles que se deixam manipular, ou os que fingem acreditar naquilo que ouvem e dizem. Mas nenhum argumento que tenha por base uma ética de massas pode aguentar-se numa discussão. Se por um momento o defensor da actual atitude do mundo ocidental conseguir se colocar do outro lado verá que todos os valores caem por terra. Mas o grupo, o pensamento de grupo, é muito forte. E não estou a equivaler moralmente um terrorista e aqueles que o combatem. Um bombista suicida está além de qualquer ética, é alguém alienado do mundo em que vive. Mas isso é o princípio de outra coisa, que tem a ver com a minha definição enquanto ocidental. Matéria para outro texto.