Anatomia do desencontro #1
Arquivado quarta-feira, agosto 10, 2005 por Sérgio Lavos | E-mail this post
Quase que se pode imaginar a desolação da estação de Lodz quando Arthur Kowalski desceu do comboio, num gélido Outubro de 1933, uma mala em cada mão. Doze horas antes, despedira-se da mãe para nunca mais a ver, mas ele não o sabia. Quando, sete anos depois, foi levado para Auschwitz, haveria de recordar este dia distante, ao descer uma vez mais de um comboio, dessa vez já sem malas nas mãos. Obrigado pela pobreza a ir viver com o tio, Konrad Kowalski, um imponente homem que a idade parecia não conseguir vergar, Arthur perdeu muito mas terá ganho ainda mais; a disciplina a que foi sujeito, o treino diário na composição, o ritmo forçado do dia, tornaram-no um daqueles homens destinados a terem o seu nome repetido pelo tempo fora. Leu de tudo, na adolescência. Volumes criteriosamente escolhidos por Konrad, desde Marco Aurélio a Montaigne, mas também Dumas, Balzac, Zola. Aprendeu francês, alemão, inglês. Recordava com gratidão o rigor implacável de Kant, o tenso controlo de Leibniz, mas emocionava-se com os movimentos largos de Rilke, o brilho de Novalis. Aprendeu a desaprovar os excessos da literatura inglesa, mas apreciava às escondidas do tio a profusão metafórica de Byron e Colleridge, e por extensão os devaneios de Nerval e Rimbaud. A sua educação passou também pela música. Na grafonola colocada na sala que às tardes se encerrava em sombras ouviu Mozart, Bach, Beethoven. E soube amar acima de todos Schubert e Mahler, em desfavor da frieza de Brahms, o favorito de Konrad. Escreveu o seu primeiro poema aos treze anos, cumpria todas as regras da tradição nacional. Aos dezasseis, publicou no jornal da escola um longo lamento de amor motivado pela recusa de Margaretha, uma loura de pele alva que o desdenhara em público, trocando-o pelo rufia da turma, Pavel. Pouco antes de entrar em Auschwitz, fora admitido na Universidade de Cracóvia. O tio, comovido como poucas vezes acontecia, recebera uma carta do director profusa em elogios à candidatura de Arthur. A última coisa que ouviu antes de bater com a cabeça no chão de cimento foi a voz de Konrad, toldada pelas lágrimas, falando do orgulho que apenas um homem com a noção de dever cumprido pode sentir.