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O Engodo da Arte


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Os nomes que damos às coisas dependem das definições que estão na sua origem, ainda que a aleatoriedade entre significado e significante já tenha sido largamente provada no passado. Por isso, falemos de literatura. Sabendo todavia que o sentido do termo encontra-se há muito estabilizado: é a literatura uma forma de expressão artística humana, uma tentativa de tradução através de palavras do mundo exterior e interior a que pertencemos. Julgo que esta definição é mais ou menos pacífica. Não me interessa o valor que o termo pode ter, inclinações pejorativas ou irónicas, não quero falar de boa e má literatura. Limitemo-nos ao termo dado, e concentremo-nos em responder a uma questão colocada no blogue Insónia, neste post e neste, também. Será a utilização de um gerador de texto na produção de poesia óbice suficiente para desconsiderarmos o resultado final como literatura?

A resposta terá de ser, fundamentalmente, sim. Se partirmos da definição utilizada em cima, claro que sim. O acto de criação, intrinsecamente humano, não nos transforma em deuses, nem sequer suporta a aspiração vã de o sermos. Torna-nos, efectivamente, humanos. O que nos distingue dos outros seres vivos, portanto. Quando aprendemos a pintar as paredes das cavernas de forma a que o conhecimento pudesse ser passado de geração para geração, quando criámos um plano que transcendia a realidade do tempo sem noção de tempo, do dia-a-dia sem memória do dia anterior, quando pudemos finalmente recordar o que fizemos através da simples observação de uma imagem deixada no ano anterior, ou quando outros puderam ler nos nossos desenhos coisas que antes eram tão impossíveis de descrever, como o medo ou a violência de uma caçada, descobrimos a condição humana. Transcendemos a condição animal, a sujeição aos caprichos da natureza e do instinto, da linguagem secreta codificada nos nossos genes. Acendeu-se em nós a ilusão do conhecimento absoluto do mundo, ou mais ainda, a ilusão de que efectivamente poderíamos controlar o nosso destino, permitida pela invenção do tempo, a linha imaginária passado-presente-futuro. Onde reside Deus, nesta maravilhosa revolução?

Mas falávamos de literatura. A linguagem, supremo instrumento de criação, testemunho vivo da imaginação pura que surgiu no Homem enquanto este aprendia a transmitir o que pulsava dentro através da arte, é a origem de tudo. A literatura, antes de ser palavra escrita, era palavra falada. A aprendizagem do mundo seguia um percurso sempre igual, de transmissão de conhecimento entre gerações, directamente de pai para filho, sim, mas também nos ritos sociais que se repetiam, nas marcas identificativas de tribos, de raças, de culturas. As histórias que se contavam de heróis de tempos passados eram a actualização do acontecimento antigo. Um rito, portanto, na definição de Mircea Eliade. O passado era presente, o acontecimento era (e continua ser, não nos esqueçamos) revivido a cada celebração de feitos e tragédias passadas.

As obras primevas da literatura ocidental, a Ilíada e a Odisseia, têm ainda muito deste ritual de renovação e passagem de conhecimento. Séculos de literatura levaram o que escrevemos para caminhos que aparentemente pouco têm a ver com os modelos originais. Mas o molde é sem dúvida o mesmo. Os interesses do escritor agora são outros: o questionamento do ser, o questionamento da própria literatura. E a melhor maneira de podermos questionar a literatura é usar a desconstrução, descobrir os alicerces que a suportam. A arte também tem vindo a seguir esse caminho. Mas não nos iludamos: Duchamp, ao pegar num urinol, invertendo-o e assinando-o, ao mesmo tempo afirmando que o objecto era uma obra da arte, continua vinculado ao Homem que desenhava animais na caverna. Duchamp procurava afrontar a arte, e nesse passo, desvendar um pouco mais da alma humana. Completamente diferente de uma máquina baralhando palavras, aplicando as regras gramaticais a um conjunto aleatório de signos. Se a literatura é expressão, então um poema automático é expressão de quê, e de quem?

O escritor depois de escrever, desliga-se do que criou, entrega o seu filho ao mundo. Mas na génese da obra está apenas ele, ninguém mais, a criação é o mais solitário dos actos. Pertencente ao mundo, anónima e apócrifa, a obra continua a ter uma vida própria, mas não esquece a sua paternidade. Nada disto tem a ver com Deus. Apenas com o Homem. O que a Máquina produz, será literatura?

(Continua)


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