Tudo o que vale a pena não está aqui.



Biblos #10


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Guerra, Harold Pinter

A caminho de casa, noite fria, inverno súbito antes de o podermos afirmar sem erro, folheio um livro acabado de me chegar às mãos, Guerra, de Harold Pinter. Confessado o desconhecimento da obra do prémio Nobel, decidira-me a colmatar a falha com a ajuda do que está disponível, começando pelo teatro. Fiquei com o sabor amargo da falta da representação. Como já aqui escrevi, teatro lido nunca foi coisa que gostasse, desde o 9ºano e do "Auto da Barca do Inferno". Mas a pulsão que se sente nos textos de Pinter é sólida, mesmo que não vista, ouvida ou sentida. Entretanto, a poesia. O conjunto de poemas reunidos nesta obra é limitado, compõe-se de curtas peças publicadas em revistas e jornais, sempre à volta do mesmo tema, a guerra. Desconfio da oportunidade desta edição (de 2003, a primeira, porque a presente reedição justifica-se pelo prémio atribuído) e pasmo perante os textos que leio. A saída deste livro pode ter duas explicações: a importância da sua obra dramatúrgica, e aquela que me parece menos digna de louvor, as suas posições políticas, de combate ao predomínio cultural americano e ao galgar de terreno do neo-liberalismo nas sociedades actuais. Nos poemas que aparecem neste volume outra preocupação emerge, a causa anti-guerra, defendida de modo pouco pacífico (e pacifista). Pinter ataca a violência de guerras inaceitáveis, como é o caso da primeira e da segunda do Golfo, e escreve socorrendo-se de uma linguagem que por vezes é tão virulenta como aquilo que ataca, alardeando uma espécie de terrorismo linguístico anti-americano (primário, de acordo com alguns). Não discuto aqui a bondade dos pontos de vista de Pinter, mas fico perplexo com a denominação deste livrinho de quase uma vintena de poemas (e quase dez euros de preço): poesia, é isso? O empobrecimento da linguagem é radical, o léxico tem o nível do comum jargão de rua, o calão abunda, a repetição de temas e imagens é flagrante (e único) recurso do poeta. O efeito pretendido é óbvio, mas quem conhece as peças que Pinter escreveu, inúmeras vezes tocadas por um lirismo comovente, estranha o despojamento, a secura, da poesia. Um exemplo, no português dos tradutores (três tradutores, três), Pedro Marques, Jorge Silva Melo e Francisco Frazão:

Futebol Americano
Uma reflexão sobre a Guerra do Golfo

Aleluia!
Funciona.
Rebentámos-lhes com aquela merda toda.

Rebentámos-lhes com a merda pelo cu acima
Até lhes sair pela porra das orelhas.

Funciona.
Rebentámos-lhes até com a merda.

Eles sufocaram na própria merda!

Aleluia.
O Senhor seja louvado por todas as coisas boas.

Desfizemos aquela porra toda em merda.
Estão a comê-la.

O Senhor seja louvado por todas as coisas boas.

Rebentámos-lhes os tomates em estilhaços de pó,
Na porra de estilhaços de pó.

Conseguimos.
Agora quero que venhas aqui e me beijes na boca.

São apenas nove poemas e um discurso proferido no seu doutoramento honoris causa, em 2002, quando os E.U.A e o Reino Unido se preparavam para invadir o Iraque. A retórica anti-guerra é inevitável, apenas se deve admirar o facto de Pinter ter escrito este discurso inflamado numa ocasião que devia ser de consagração. Mas a atitude rebelde, anti-establishment, não me parece ser razão válida para o elogio desta pobre súmula de poemas anti-qualquer coisa. Os quase dez euros que o livro custa (a mim, felizmente, ofereceram-mo) são pornográficos.


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