Ora, se, por um lado, Enrique Vila-Matas domina a ironia como poucos, por outro peca ao proclamar a sua estratégia bem alto, e parte do efeito pretendido desmorona-se, aquele que se serve da ironia vive de um aparente desprendimento em relação à obra criada, e falo de auto-ironia, portanto; o apedrejamento sem tréguas que o escritor catalão ensaia, em "Paris Nunca se Acaba", do seu primeiro livro, "A Assassina Ilustrada", é excessivamente auto-complacente, como se depois das fraquezas dessa tentativa inicial tudo se tivesse composto até ao estado actual de quase-perfeição. Mas, é claro, tudo isto é ficção, já sei. O narrador do livro assume-se como um Vila-Matas que na verdade não existe, como o próprio insiste em repetir nas entrevistas que tem dado, e neste confortável não-lugar entre duas existências que, de modo algum, se opõem se vai construindo o típico livro para aspirantes a escritores e o leitor que espera ser ensinado pelo livro que lê amarem. O escritor culto que a cada cinco linhas cita de memória (num texto que sabemos ter sido revisto suficientes vezes para não conter incorrecções), digo, cita de memória outro escritor, sabemos nós muito bem em que caldo se formou: Jorge Luis Borges, mas afirmo o pormenor que diferencia (e distancia) os dois que aqui menciono; os autores inventados por Borges são tão reais como as palavras que os criam, os narradores de Borges oscilam no meio-mundo da incerteza ficcional, como acontece por exemplo no conto "Pierre Menard, autor do Quixote" ou naquele que para mim é o mais perfeito exemplo da arte do logro borgesiana, "Tlon, Uqbar, Orbis Tertius". Vila-Matas não consegue erguer os seus textos acima da linha que delimita o mundo real e o mundo da imaginação, o único efeito plenamente atingido é o da ilusão, como se ele fosse apenas um pobre prestidigitador da realidade. Lêmo-lo porque julgamos conhecer o autor que passou fome e tristeza e, facto celebrado sem pudor, conheceu Marguerite Duras em Paris, e apenas a sua suspeita defesa da ironia (e o impecável domínio da escrita, claro) lhe perdoa o pecado da vaidade. Ainda assim, muito se ganharia se todos os livros de memórias (reais ou ficcionadas, ou ambas) fossem escritos com a elegância, a verve e a leveza culta que Vila-Matas ostenta. E isto não é uma referência à burguesa que revolucionou a literatura memorialística nacional.
*Falta o (2), já lá vamos a seguir.