Planeara escrever, antes de começar, um texto que deixou de fazer sentido. Maus sentimentos na origem do texto, uma daquelas irritações que insistem em forçar a verbalização, a qual contrariarei, sabendo eu como a maior parte das vezes a concretização do impulso me traz apenas arrependimento e frustração.
Nos seis anos do seu desaparecimento, uma evocação da actriz Fernanda Alves no
A Invenção de Morel trocou-me as voltas, limpou o fel que sufocava na gargante há dois dias. Nunca a vi representar ao vivo, confesso, e quando tive conhecimento da notícia apenas me impressionei com uma fotografia de juventude que irradiava uma beleza inquestionável. Outra fotografia que circulou na altura mostrava-a junto do seu companheiro de uma vida, Ernesto Sampaio, tradutor exemplar, surrealista por vezes, poeta, ensaísta, figura marginal da literatura portuguesa. E admito que a morte de Fernanda Alves rapidamente se tornou facto esquecido, até algum tempo depois. Algum tempo depois, quando aparece nas livrarias um volume de título "Fernanda", editado pela Fenda. Comprei-o, salvo erro, na Feira do Livro e li-o ao sabor de um tempo que, para mim, na altura seria de quase desespero, corria devagar e se encerrava em si próprio como uma espiral ameaçando estrangulamento. Uma descoberta como raras vezes acontece, e meses depois ele morria. De amor, como afirmou Mário Cesariny. O José Mário Silva, no seu texto, fala de uma alegria pura soltando-se do rosto da actriz quando viva e encontra nos olhos do poeta uma melancolia que talvez intuísse já a dor vindoura. A mim parece-me que os olhos não podem revelar assim tanto, e eu desconfio que depois do presente passar torna-se algo que se pode reconstruir de acordo com a nossa vontade. Gostava portanto de pensar, como o José Mário, que tudo morava já ali, naqueles olhos adivinhando o futuro. Mas não. Sim, ele temia perdê-la um dia, mas somos nós, daqui do nosso invejável futuro, que construímos personagens à medida do nosso desejo, prontas a encaixar na nossa história pessoal, uma consequência da necessidade que temos de entendermo-nos a nós próprios através dos outros. Parece-me que Ernesto Sampaio não desistiu da vida, a vida é que desistiu dele quando lhe furtou a única válida razão para continuar a existir: alguém para amar.
Textos que por vezes nos fazem retroceder no caminho. Ainda bem que assim é.