António Gancho (1940-2005)
Arquivado sexta-feira, janeiro 06, 2006 por Sérgio Lavos | E-mail this post
Durante dois anos passei regularmente à porta de sua casa, a caminho de Sintra. Sabia-o lá, e imaginava-o entre os que se sentavam na paragem à espera de um autocarro que acabava por nunca chegar. Eram os mais inofensivos, os que aguardavam o autocarro. Mas o autocarro não parava para que eles subissem. Nunca saberei se António Gancho, que morreu há uns dias, escrevia os seus poemas aproveitando algum período de repouso entre viagens, no regresso a terra firme, se o fazia quando mais se afastava do que poderia chamar a sua casa, algum lugar esquecido de infãncia - porque aí resiste, entricheirada, a pouca verdade que a vida pode assumir. Desconfio que nenhuma das duas hipóteses é verdadeira. O poema será talvez um momento de loucura que se acende no tecido da realidade, por isso prefiro imaginar que António Gancho decidiu estender o lençol lírico sobre a matéria suja da vida e transformar a sua realidade num poema interminável que apenas pôde suspender a sua respiração à força de um sorriso - irónico volte-face - final. E eu limitava-me a saber que ele habitava ali, a dois passos do meu percurso habitual, e isso bastava-me.
"Tanto tempo mãe para saber ao que nos cegam as coisas Tanto tempo mãe para cá estar
para tratar da vida
para tratar da morte
para tratar de tudo.
Tanto tempo mãe com o tempo todo mudo.
Tanto tempo mãe tanto de tudo.
Quero exilar-me mãe
quero tratar
não me quero matar
quero a morte quando for morte
só quero a morte à dita sorte
de estar escrita na vida
mãe seja predita e diga-me mãe
para que foi tanto cansaço
tão pouco espaço
tanta falta de espaço
na vida.
Mãe, só a vida.
Vida, vida."