Não me preocuparia o facto de muitos dos que pertencem à
geração que agora entra na casa dos 30 irem votar Cavaco. Sei que a maturidade, além de nos abençoar com alguma sabedoria, ameniza os radicalismos de juventude. Os mais velhos sempre me disseram que mais cedo ou mais tarde, depois que a poeira assentasse e eu me desse conta da inevitabilidade de certas coisas, veria a luz. Descobriria o ridículo de certas noções e ideologias, no fundo me tornaria um conservador liberto de ideias inúteis a que normalmente se associam duas coisas: a esquerda e a juventude.
Sim, eu andei nas manifestações anti-PGA, contra as propinas, e cheguei a sentir no lombo uma sombra de cassetete da opressora polícia que carregava sobre a chusma de "rascas" que protestavam em frente à Assembleia da República. Houve um tempo até que namorei de forma amena o dirigismo estudantil, apesar da minha aproximação ter sido acima de tudo estética; fui suplente numa lista que perdeu as eleições para a Associação de Estudantes da FCSH, e depois da derrota colaborei com alguns textos num jornal que activamente se opunha à lista vencedora das eleições. Mas nada de conteúdo político, outros havia mais habilitados do que eu para a tarefa. Gostava dos murais, confesso, e gostava da ovelha negra, claro, e gostava do look vanguarda e do estilo associado aos revolucionários. Ah, e das ganzas, é bom de ver. A grande luta do PSR, depois BE, nos últimos quinze anos, e penso que este facto define uma ideologia. A leitura de Marx e Lenine é óbvio que era perfeitamente acessória. Vi a luz mais tarde, mas confesso que nunca fui completamente cego a certas contradições da esquerda em que acreditava. A atitude de rebanho sempre me mexeu com os nervos, se possuo algum traço de direita será o meu individualismo exarcebado que supera qualquer ideia de colectivismo, a que a esquerda está sempre associada. A verdade é que este afastamento se foi acentuando, e de céptico passei a fervoroso defensor de uma liberdade que nascesse primeiro ao nível do indivíduo e fosse avessa a seguidismos partidários e ideológicos.
Não sei se o facto de separar águas a nível estético teve alguma influência nesta mudança. Em tempos distinguia quem estava do meu lado da barricada dos outros. Durante alguns anos torci o nariz a Morrissey, por exemplo, e desconfiava dos boatos que rodeavam os New Order e Joy Division, e assim nomeio três daqueles que conseguiram mais tarde aceder ao meu panteão pessoal. Habituei-me a gostar deles separando estética e ética, coisa simples de fazer, mas que, lá está, apenas se adquire com a idade. A maturidade. E agora entrei nos 30. Apesar de todas as objecções, continuo próximo da esquerda em que votava quando tinha 20 anos. Apesar do que disse acima. Porque separo as coisas, mas não esqueço. Não esqueço os 10 anos de governo ingloriamente desaproveitados por Cavaco, as verbas comunitárias gastas ao desbarato em áreas da economia condenadas ao desaparecimento, a ultrapassagem pela esquerda que a Irlanda e a Grécia nos fizeram, utilizando os subsídios atribuidos pela UE de forma muito mais sábia. Estamos na situação em que estamos em grande parte como consequência da incompetência deste homem que agora se presta a ser entronizado por uma classe média que engordou à custa de um sobrendividamento do país e de um culto do consumismo desregrado. Chegámos aqui, e nem preciso de repetir o rosário de desgraças que acometeram o país, porque este homem que pretende ser figura máxima da nação deitou tudo a perder, não porque acreditasse num rumo de que eu pessoalmente discordasse, mas porque sacou todas as cartas erradas quando tinha o jogo na mão: apostou no desenvolvimento das auto-estradas e esqueceu-se das vias ferroviárias, único modo de combater o abandono do interior, e nem precisava de ser original para o fazer: todos os países da Europa desenvolveram a rede ferroviária em desfavor da rodoviária. Investiu na agricultura e esqueceu-se do sector de serviços, o verdadeiro motor das sociedades modernas. E mais, depois dos milhões gastos com a agricultura, vemo-nos obrigados a produzir menos, a aceitar a humilhação das quotas e das verbas para a não-produção. Enquanto a Irlanda formava pessoas para os sectores do desenvolvimento que interessavam, o campo das novas tecnologias emergentes no final da década de 80, em Portugal Cavaco aumentava as vagas em cursos que inevitavelmente conduzem ao desemprego, os inefáveis cursos da área das Ciências Sociais e Humanas que educam futuros empregados do comércio e desempregados, professores que penam pelo país fora todos os anos, incompetentes que engrossam as fileiras do funcionalismo público, o "tacho" mais cobiçado de todos. Enquanto isto, os cursos técnicos estão às moscas e cada vez mais se nota a falta de quadros que consigam atrair investimento estrangeiro, ao contrário do que acontece na mencionada Irlanda, por exemplo. É claro que Guterres foi um aluno aplicado de Cavaco, mas a culpa primeira é deste, e se daqui a alguns anos nos virmos transformados numa qualquer república sul-americana, eu sei a quem tenho de pedir meças. Pena é que o responsável se prepare para sentar na cadeira do presidente. Mas não com o meu voto. A maturidade esclareceu alguns pontos obscuros da esquerda, mas não me obriguem a levar com a primeira causa do atraso do país em que vivo. Não me preocuparia muito com o facto de alguns que agora entram na casa dos 30 irem votar Cavaco. Apenas gostaria de saber porquê. Uma razão apenas. Uma.