uma sageza ingénua, juvenil espreita do azul dos olhos, ele vê que eu vi,
-para começar, este seu livro, é aquilo que queria?
um sorriso passeia-se por momentos no rosto, ele responde,
-é sempre, e nunca é, sabe, quer dizer, este nasceu como eu queria, mas entretanto já embarquei noutro...
retira um cigarro do maço que está no bolso da camisa, acende-o.
-o último costuma ser o melhor, não é assim?
-bem, nem sempre, mas para mim, é, até que... dizem-me que sim, dizem que sim... e penso que confio mais na opinião dos que me aconselham do que na minha, é muito difícil ler criticamente aquilo que escrevi, é como se fosse o meu sangue, as entranhas.
levanta-se e passeia pela sala, resguarda-se, esconde o olhar ao dizer isto, mantenho-me sentado, de gravador na mão. Durante alguns segundos, apenas se ouve o ruído arrastado da cassete. E os pássaros de verão estremecem no arvoredo em frente.
-o sofrimento do escritor...
atrevo-me, e arrependo-me do meu passo, do irremediável lugar-comum, outro sorriso como pagamento.
-já disse isto não sei quantas vezes, mas olhe que é verdade, é verdade...
entretanto sentado, deita cinza num cinzeiro de metal (afinal levantara-se com um propósito), decide apagar o cigarro.
-não acredito na escrita fácil, na inspiração, preciso de trabalhar muito, como um pedreiro, ou um escultor... é um trabalho que pode ser fisicamente extenuante.
-tem um horário, como o pedreiro?
não sei se nota a ironia da pergunta, nada se acende nos olhos e enfrento-o, por momentos confiante.
-tenho, tenho, nem sempre o cumpro...