Tudo o que vale a pena não está aqui.



Longe


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Reconheci-te assim que atendeste. O teu timbre é inconfundível, identifico-te ao primeiro som, a maneira como dizes “Sim...” faz-me ficar com o estômago a arder.
Durante muitos anos apaixonei-me por muitas vozes diferentes: vozes finas e perfurantes, vozes coquettes, maviosas, vozes de caso, de fatalismo mortal, vozes roucas e profundas, como se fossem comandadas por um ser vindo do mais longínquo recanto infernal, vozes sérias e petulantes, vozes que nos tons mais agudos reverberam numa estridência irritante, mas que depois descem de tom até se tornarem num ronronar insinuante, vozes que indicam a mais pura honestidade, vozes falsas até à mais ínfima nota, vozes poderosas, decididas, vozes abandonadas, perdidas, pedindo aconchego e protecção, vozes nasais, mundanas e vulgares, sedutoras, vozes maternais, condescendentes e ternas, vozes cansadas e gastas da vida, vozes alegres e abertas ao mundo, vozes infantis, birrentas, vozes que me aceleram as pulsações, sensuais e nocturnas, vozes indefinidas, subindo de tom e baixando, vozes que vêm dos céus, dos anjos, vozes gulosas, vampirescas, vozes generosas, com o poder de oferecer o mundo, vozes melosas, etílicas, as mais sinceras de todas, vozes primaveris, nascidas da substância de que é feito o rasto que os pássaros deixam no céu, vozes marítimas, salgadas, feitas de luz e de carne, vozes de fogo, ardendo na distância que as separava de mim, vozes de todos os feitios e matizes, vozes que podiam ser um quadro de Turner ou uma monstruosidade de Picasso, vozes com o amarelo de Van Gogh ou o verde de Monet, vozes agoirando a felicidade ou adivinhando a tristeza, vozes compostas de vazio e vozes de onde nasce o mundo... e, no entanto, foi a tua voz que mudou o meu mundo, foi a tua voz que me deu vontade de conhecer a pessoa por detrás dela.
...sim... Eu disse está, quem fala?, como se não soubesse que eras tu, conheço todos os lugares escondidos da tua voz, espiei-te durante meses e meses, escutei conversas, ouvi-te rir e chorar, ouvi-te confidenciar, a partir de certa altura podia adivinhar o que irias dizer a seguir, o tom que irias utilizar, surpreendi-te no banho, na cama, gosto quando atendes o telefone na cama, sorvo cada som que sai da tua boca, as palavras chegando, hesitantes, aos solavancos, a rouquidão deixada pelo fumo dos teus quinze cigarros diários pintando a tua voz com pinceladas de ocre, de noite, mas eu sei que esse teu momento matinal é breve, sei que pouco a pouco, subtilmente, a tua voz se vai matizando de cores frescas, a próxima vez que atendes o telefone estarás alegre e bem-disposta, já terás bebido um café e praparas-te para entrar no banho que se ouve lá ao fundo, por vezes levas o telefone para a casa de banho e estás meia-hora a falar, conversando sobre isto e aquilo, adoro a maneira como te ris de manhã, o som da água a correr parece que sai do telefone, tenho a certeza que muitas amigas tuas te telefonam de manhã para receberem um pouco da tua alegria, da tua vontade de apenas ser. Aos fins-de-semana, quando descansas do trabalho diário, a tua voz adquire tons mais calmos, reflexivos, por vezes os teus antigos amantes telefonam a combinar coisas, falas com eles, escuta-los e às suas desilusões amorosas, a serenidade que emana de ti tem um efeito tranquilizante, quase maternal, digo quase porque nunca deixas que eles sejam demasiado dependentes, por isso quando atendes o telefone fazes sempre questão de dar a entender que estavas ocupada, falas do livro que lias, ou do filme que vias... Sabes, eu sei que tu gostas de chorar a ver os grandes dramas, sozinha no teu canto, mas nunca contaste a ninguém, preferes guardar isso para ti, os teus momentos de catarse; uma sombra inconfundível paira sobre a tua voz, quando és interrompida nesses momentos. Sei que choraste quando viste o Paciente Inglês, e sei que sentiste um pouco de vergonha por isso, pelo cliché que isso representava. Sei que choravas quando atendeste o telefone num Sábado à tarde, e sei que o fazias porque tinhas estado a ler a Insustentável Leveza do Ser, leste o livro tu em dois dias e depois eu também o li, e também me emocionei com as mesmas coisas com que tu te emocionaste. A voz do outro lado, uma qualquer amiga tua, pensou que tinha sido mais uma das tuas separações, mas só eu sei a verdadeira razão da tua tristeza. Porque os teus choros são diferentes, quando sofres, são desesperados e chantagistas ao mesmo tempo, são soluçados e confessionais, são choros que só existem para ser partilhados com alguém, não possuem a intimidade de um choro provocado por uma obra de arte, a terrível tristeza que uma obra de arte pode esconder...
Quando alguém te parte o coração quero saltar para o outro lado da linha, estar ao pé de ti e ser o amigo que abraças, a água que lava a ferida que os outros infligem, gostava apenas de sentir o teu calor. Mas nunca tive coragem. Até hoje. Sei que não és perfeita, no entanto. Sei que humilhaste muitos homens, torturaste-os, fizeste-os rastejar na tua direcção. É a tua parte da vingança que o género feminino deve ao homem. É só mais um pouco, uma gota de água, mas cumpres isso com um prazer profissional, genético. De certo modo, não me importo. A tua voz, quando ao telefone esboças planos com alguma das tuas amigas, tinge-se de traços irremediavelmente atraentes para os meus ouvidos, e nessas alturas fico ainda com mais vontade de te contactar, dar um corpo ao som, moldar-te. Confesso que frequentemente fantasio a primeira vez que te vejo, o primeiro olhar, o primeiro toque de dedos, o primeiro riso arrancado, a primeira identificação pessoal (e eu sei que teremos muito em comum, conheço tão bem a tua voz como a minha), o primeiro deslumbre com algum pormenor da paisagem, a luz da tarde, as vagas de um campo na Primavera, o primeiro beijo... cheguei a imaginar um futuro ainda mais longínquo, a nossa casa, os nossos filhos, os nossos serões à lareira, as nossas viagens a países exóticos, porque eu sei que gostas do sol, de toda a sua vida, mas também sei que gostas igualmente de países com história, e imaginei-me contigo a visitar Paris, Veneza... imaginei-me a envelhecer sem pressa a teu lado, a vermos crescer os nossos filhos, a chegarmos à derradeira idade recordando tudo o que passámos, a maneira como nos conhecemos, as dificuldades que ultrapassámos, todo o tempo que vivemos juntos.
Agora que se aproxima a hora, todas as minhas dúvidas se vão dissipando, tudo o que senti que poderia não acontecer. É idiota, eu sei, construí uma pessoa para a tua voz e a certa altura, quando preparei tudo para me encontrar contigo, duvidei de mim próprio. Entrei em pânico quando comecei a pensar que a imagem que construíra poderia ser diferente da realidade, porque por vezes, como já te disse, as vozes podem ser traiçoeiras, indiciar algo que não são, magoar. Mas depois decidi que não importava que fosses diferente do que eu esperava, o mais importante é a melodia que eu todos os dias ouço do outro lado da linha, e lembrei-me ainda mais vivamente da curva do teu “Sim...”, prolongando o som, a inflexão questionante da sílaba, e quando eu perguntei se eras tu, tu disseste que eras e ouvi nessa afirmativa a promessa de tudo o que conseguir contigo, toda a certeza daquilo que me trarás, da concretização. A tua voz já não será, então, um rumor do futuro, mas uma definição do presente, tudo o que sonhei para mim, para nós, a terrível solidão não mais existirá.


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