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Anatomia do desencontro #3


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Anarquista sem dentes, do tempo da monarquia, perdeu-se no dia 28 de Maio, a caminho de um atentado, para nunca mais. O que lhe disseram os instintos, ao tomar decisão tão definitiva, caminhando pela rua do Alecrim abaixo, com a nesga de rio em vista? Lúcido e racional, denotava uma frieza que contrastava com o calor que subia da calçada. Apertava com força no bolso um revólver de pequenas dimensões, e os seus dedos, quase que estrangulados, sem pinga de sangue, começavam a doer, por dentro sorria. Pois um homem que preza a sua vontade não liga a conselhos de supostos amigos, obedece aos instintos, às ordens do coração. No outro bolso um livro saltava, fedia com o fedor das coisas ruins, de maus fígados. O fulano que lhe oferecera aquilo, um dia antes, agora fugia para o Brasil, consciente do perigo que corria. A maior parte das vezes, porém, a ingenuidade anda a par com a violência. Homens há que morrem por uma pátria, o anarquista morreria se preciso fosse pela destruição de tudo. Ao fundo, na praça, a multidão aumentava, a manhã crescia para dentro do dia. Pessoas que não paravam, não olhavam, cavalheiros sem modos nem tempo a perder, a cidade era um erro diariamente repetido, e ele pretendia dar um fim ao animal moribundo. Antes mesmo de ser arrastado pelo cortejo que passava, acudiram-lhe ao espírito, maternas, as palavras que lera: "An anarchist is an artist. The man who throws a bomb is an artist, because he prefers a great moment to everything. He sees how much more valuableis one burst of blazing light, one peal of perfect thunder, than the mere common bodies of a few shapeless policemen. An artist disregards all governments, abolishes all conventions. The poet delights in disorder only." A literalidade é um erro, um desvio. O anarquista sem dentes, atingido em cheio pelo fim que escolhera, estendia no altar o corpo, a alma recolhendo o prémio a que tinha direito.


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