Lembro-me de quando o meu rosto se tornou visível, assumiu-se perante mim e o meu espelho. Lembro-me da primeira vez que pensei que, como Dorian Gray, iria transformar-me noutra coisa que não era, iria ser aquilo que nunca poderia ter pensado ser. Descobri com ele o lento passo do tempo, os seus vagarosos gestos de artesão burilando a pele do rosto, do corpo, a luz dos olhos, a forma do sorriso. E o meu rosto olhava espantado ao espelho, descobrindo em si o que ainda podia guardar para o futuro, os lábios meio abertos surpreendidos com a sua própria humanidade, os olhos pequenos espreitando o estúdio, o caos controlado, a vida que ali pulsava, a sombra dos cabelos criando um musgo cinzento que se estendia pela carne até ao vermelho das maçãs, até à curva das orelhas e do risco que o cabelo desenhava sobre o osso dos maxilares caídos, todo o rosto era luz, e no entanto surpreendia-se não se sabe bem com quê, talvez tivesse à sua frente o mesmo retrato quarenta anos depois, a barba esparsa e grisalha cobrindo a pele fendida como um casco de navio, os novelos dos cabelos suspensos sobre os olhos cada vez mais fechados, mirrados pela miopia, pelos anos e anos de cores e de luzes que produziram, talvez aquele jovem homem, que era eu, e era Rembrandt aos 23 anos, ainda não soubesse da vaga morosa que se iria apoderar de tudo, dos gestos, da voz, da certeza das palavras, do doloroso ofício da memória, relembrar fotografias e entrever imagens do futuro, juntar todos os tempos num tempo, e ainda poder resistir, continuar a pintar.