Tudo o que vale a pena não está aqui.



O Gabinete do Amador #1


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Muitas vezes, quando o homem se olhava ao espelho, interrogava-se se ainda estaria ali ou dentro do espelho. Não sabia se era ele ou outra coisa qualquer, não tinha a certeza do fluir dos acontecimentos, criava-se na sua cabeça um súbito caos, como se caísse uma tempestade por dentro das têmporas. No entanto, o artista tem sempre a certeza do seu quadro, imagina-se o Criador absoluto, e portanto o homem não teria que se preocupar, seria sempre como uma marioneta nas mãos do artista, um espelho dentro de um espelho, dentro de um espelho. Existe uma fotografia, encontrada uns anos mais tarde num baú abandonado na casa do artista, que mostra uma camada sobre outra, tinta de pintar sobre a tinta da fotografia, e onde ele é o homem que se olhava ao espelho, a nuca penteada e escura, o pescoço meio cheio, a camisa a espreitar por debaixo do casaco. Esse homem pinta uma tela. Na tela existe: um homem pintando uma tela; na tela existe: um homem pintado uma tela de um homem pintando uma tela. O homem verdadeiro perdeu-se no labirinto das imagens. Costumava imaginar-se dentro de uma televisão pintando uma tela, um artista no seu atelier, pintando-se a trabalhar no seu atelier. Milhões de pessoas veriam o artista a pintar-se a ele próprio, e as pessoas não saberiam se o Criador era o homem que pintava ou o homem que era pintado, visto serem os dois o mesmo. Entretanto, sentado no seu sofá, fazendo uma pausa depois de ter acabado o seu quadro do homem olhando para o espelho, invertido, o artista estaria a olhar para todos os espectadores assistindo na televisão à criação do pintor: o artista pintando-se no trabalho, pintando o infinito. A imagem seria um ecrã ou um espelho?


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