O Engodo da Arte (2)
Arquivado quarta-feira, setembro 21, 2005 por Sérgio Lavos | E-mail this post
Acabei de ler um romance que poderá ser mais um contributo para o problema da origem da criação da obra de arte. Falo de "Never Let Me Go", de Kazuo Ishiguro. Nele, é debatido um assunto que pertence ao ar dos tempos, a clonagem e as questões éticas que ela coloca. Kathy, Tommy e Ruth crescem numa instituição, Hailsham, que os educa de forma a que acabem por acreditar que são especiais, únicos. O livro é uma reflexão tocante sobre a amizade, a mortalidade e o muro que esta ergue no limite das escolhas individuais. Em Hailsham, os alunos são educados nas belas-artes, existe um ambiente propício à criatividade, o desenho e a criação de poesia são mesmo tarefas valorizadas ao extremo pelos tutores da instituição. Quando, no final do romance (e agora aconselho o potencial leitor do livro a saltar as próximas linhas), Kathy e Tommy conseguem finalmente encontrar Madame, a misteriosa mulher que organiza uma improvável galeria que reúne os melhores trabalhos dos alunos, tudo se revela. Tommy desconfia da suma importância da arte produzida pelos alunos, por isso se empenhara a fundo na produção de desenhos para mostrar a Madame. Quando esta é confrontada pelos dois, cede e desvenda o terrível segredo (que afinal seria já de polichinelo): a arte, que é a chave para a alma dos Homens, não ajudará no adiamento do destino reservado a todos (os clones, neste caso). Madame e Miss Emily tinham pensado Hailsham com o objectivo de tratar os clones, criados apenas com o propósito terminal de doação de orgãos, de modo mais humano; a arte que os alunos produzem será a prova do logro da missão das duas. Quem consegue transmitir assim o que está vedado aos olhos do Outro não pode ser uma criatura inferior à raça humana. A criação como prova de humanidade. Ponto para Ishiguro.