Andar com um bloco de notas atrás como se fosse uma flor na lapela sempre me pareceu pornográfico. O olhar do voyeur precisa da minúcia tensa do dedo segurando a caneta, assentando no papel aquilo que a memória por vezes se esquece de guardar. Uma questão de desfaçatez, coragem desmiolada, andar com tal arma em punho à cata dos sentimentos dos outros, dos movimentos em falso de que ninguém nunca está a salvo. Quando me sento em cafés, uma das coisas que mais me inquieta é detectar o voyeur do bloco de notas; fico nervoso só de pensar que as palavras que o pornógrafo escreve mintam de forma descarada aquilo que na realidade sou. Porque sei que ele apenas pode imaginar, nunca retratar a verdade inequívoca. É um inferno, essa sensação de impotência perante o outro que me observa. Começo a pensar no que ele está a pensar, sinto ânsias de me levantar, ameaçador, e dirigir-me aonde está sentado:
- Desculpe, importa-se de não especular sobre a minha vida?
Absurdo pensamento, admito. Para descansar na minha inquietação, prefiro achar que o mundo que ele observa nada tem que ver comigo, ou então considerar que são apenas números aquilo que é desenhado no papel, sorrio para dentro quando concluo que quem escreve é apenas um contabilista que leva trabalho para casa, pobre desgraçado. Ou então fingir que eu próprio tenho um bloco de notas à frente, coisa por si só contrária à minha natureza, e assento no papel o que aquele que me vê pensa. Ponho-me no lugar dele, devaneio. Diga-se de passagem que a razão porque abomino o horrível hábito de levar um bloco de notas para todo o lado prende-se com algo que me causa uma leve repulsa: a vergonha de observar. Nem mulheres consigo focar direito, por vezes nem aqueles que pertencem ao meu círculo mais próximo obtêm o privilégio do olhar directo, quanto mais estranhos sentados em cafés, ou em jardins, ou em comboios. Razão clara para detestar esse nocivo hábito. Agora, se por um acaso me sento no lugar privilegiado do observador e começo a olhar em redor, espreitando as mãos tremendo daquela mulher ali, maquilhagem desfazendo-se, ou intuo naquele riso simultâneo do casal ao canto, ela bela, morrendo de juventude, apoiando a cabeça nele, uma pequena falsidade, ele não ri com prazer, com o gozo transbordante que apenas uma mulher sublimada pela paixão sente, e não por que a sua condição masculina o limite, há algo mais, ele mente, provável traição, e a outra mulher que não sabe onde esconder o olhar e o homem de barba por fazer vigia-lhe as pernas que assentam perfeitas sobre a cadeira, bebe depois o resto da cerveja que durou uns bons dez minutos a desaparecer, se por um acidente do destino sou por um momento o voyeur que me espreitava vejo o casal que agora se calou e tento perceber que forma inconstante o amor esconde, um muro de luz estalando na tarde do papel e na tarde que se estende lá fora, mas eu não acredito no poder dos ridículos blocos de notas: a vida apenas existe dentro da cabeça, e explode fragmentando-se em palavras que não pairam assim por aí, à espera de serem capturadas pelo escritor do bloco de notas. O voyeur que alimenta o vício como quem não quer a coisa, às avessas com o mundo, de costas voltadas para o interior que resplandece.