Anatomia do desencontro #4
Arquivado terça-feira, novembro 29, 2005 por Sérgio Lavos | E-mail this post
Um dia de frio como este, de sol sem calor e silêncio sem vento. Depois do nevoeiro. Dissipação. Encontrei-o num dia assim, apertámos as mãos e o rio espreitava a familiaridade forçada de quem considerava dois ou três encontros fortuitos motivo bastante para o reconhecimento habitual de gestos. Depois, sentado bebendo um café muito curto, ele começou a falar. O seu projecto secreto, há anos que trabalhava nele, escrevia, pensava, alinhava mentalmente capítulos e imaginava personagens secundárias, tentava completar a vida falsa que os dois homens seriam forçados a partilhar durante um tempo que seria de impossível previsão, um tempo encerrado no espaço do livro por vir. Uma tarefa espinhosa, dizia ele, o sol batendo por trás de um rosto sério e decidido. "Há que contornar as dificuldades, mas também os facilitismos, não quero escrever um romance histórico perfeitamente banal, sem rasgo, queria inventar um romance de ideias, daqueles como já não se fazem. Talvez demasiado ousado, dirá, mas que fazer? É uma ideia que me persegue há quase vinte anos, desde que comecei a escrever." O esforço acumulado transparecia no seu discurso, um cansaço subterrâneo talvez começasse já a corroer-lhe a vontade, mas divago. Nada havia na sua postura que indiciasse uma sombra de desistência. "Kafka e Pessoa, bebendo juntos no Martinho d'Arcada, o primeiro recusando o absinto que o segundo insiste em oferecer. Mas não, que imagem inverosímil, seria mais provável o encontro dos dois, ignorantes um do outro, para uma qualquer reunião a propósito de um negócio entre empresas, discutir pormenores triviais, números, alinhar colunas de algarismos, esse tipo de assunto. Qual dos dois teria a perspicácia de perceber no outro o indefinível ruído de fundo que estremece por dentro da vida? Kafka seria mais astuto, é ideia comum no grupo de conhecidos que com ele conviveu o modo como parecia detectar nos outros a matéria essencial que se oculta no tédio das conversas quotidianas. Aliás, nada parecia ser acessório em Kafka. Entusiasmava-se apenas com temas do seu interesse, a troca de banalidades e a conversa de circunstância pouco tinham que ver com ele. Pessoa talvez não fosse assim, pressinto que o álcool lhe ia minando as capacidades agudas que qualquer génio deve possuir, duvido que ele notasse em Kafka a imagem de si próprio, o incrível acaso que foi a vida e a obra dos dois. Ambos dedicados a profissões que os remetiam a uma presença discreta na vida dos outros, ambos bartlebys satisfeitos no seu canto, dispostos a apagar da existência qualquer pretensão de importância. Única pista: o seu modo de preferirem não existir. À noite regressavam aos seus quartos e escreviam. Regressavam e escreviam. Duvido que fosse loucura." Acreditei nele.
(Fernando Pessoa morreu num dia assim, há setenta anos atrás.)