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Há um defeito decisivo no liberalismo económico que, previsivelmente, tende a ser esquecido por quem mama na teta desta vaca sagrada da chamada globalização: os ultrapassados do processo. Digo, defeito, e não corro o perigo de cair na demagogia; é uma falha no raciocínio. O Estado que distribui o poder pelas mãos dos indivíduos esquece-se da responsabilidade que está subjacente a esse poder. É mais fácil uma entidade colectiva e abstracta assumir a responsabilidade do indivíduo, dotando o conjunto de todos os cidadãos com os seus direitos e deveres e criando os mecanismos necessários ao cumprimento destas obrigações. No fundo, trata-se apenas de admitir a necessidade da existência de algo ou alguém que lidere, que confira ao indivíduo uma importância relativa face ao outro, de modo a que a natural tendência do Homem para a tirania e a violência não se afirme para o exterior. A vantagem da Democracia em relação a qualquer um dos outros sistemas já experimentados é precisamente o seu carácter abstracto: as eleições directas e livres oferecem ao indivíduo a possibilidade da ilusão da decisão. A Constituição de um país é a garantia de que o abuso de poder não acontece. O estado de normalização das relações entre indivíduo e Estado e entre cada indivíduo prolonga-se enquanto as regras definidas pela Lei são respeitadas. O estado de excepção costuma ser, por isso, o primeiro sinal de que o mecanismo democrático corre o perigo de falência. Acontece isto em todas as revoluções e acontece em todas as ditaduras. Quando o poder se concentra nas mãos de apenas um indivíduo, a excepção torna-se regra e o poder virtual dos cidadãos desaparece.
O que o liberalismo económico permite é que o poder se concentre nas mãos de uns poucos (sendo que, neste caso, o poder emana da acumulação de capital) e o que efectivamente acontece é que o poder virtual que o indivíduo partilha com um Estado abstracto desaparece. Quem efectivamente decide é quem consegue maior acumulação de riqueza; os orgãos de soberania ou são completamente controlados pelo poder económico ou são esvaziados da sua capacidade de decisão, restando-lhes um papel acessório, de simples muleta dos grupos económicos que controlam o Capital. Não é preciso repetir que Marx já descreveu estas perversões há 150 anos atrás, e também não necessitamos de lembrar tudo o que correu mal com o modelo comunista.
Existe uma dinâmica que cumpre na perfeição um programa profundamente individualista e egoísta de acumulação de riqueza. Os valores ensinados quase só passam por aí, e quem é empurrado para a margem desta corrente avassaladora apenas pode sentir impotência perante o descalabro. Depois de séculos de conquista de direitos para os trabalhadores, caminhamos agora no sentido inverso; o Estado cede ao poder económico e vai placidamente varrendo para debaixo do tapete da História os direitos que antes existiam, de passagem vomitando cá fora chavões que todos conhecem mas poucos percebem: a competitividade, a concorrência, a produtividade. Quem decide pode, num piscar de olhos, despedir milhares de funcionários que são arrastados para a periferia da sociedade. Repito o chavão de esquerda de que os indivíduos são números porque, nunca como hoje, e cada vez mais, é esta a realidade a que nos vamos ter que habituar. Repare-se, muitas vezes estas medidas drásticas que as empresas tomam quando os lucros descem não pretendem reparar eventuais prejuízos; são apenas os lucros que descem. O lucro pelo lucro, outro chavão verdadeiro, pois claro. Os que sentem na pele medidas de teor quase orweliano correspondem apenas a uns quantos milhões que se ganham, e o pior é que ninguém, com a excepção de quem manda, lucra verdadeiramente com isto. É pornográfico olharmos para o esbanjamento dos ricos, e isto não é demagogia. O liberalismo económico é o grau zero do Humanismo que fundou a Civilização Ocidental. A noção de invíduo dilui-se no conjunto onde ele é englobado, deste modo desaparecendo também toda a dignidade que lhe deve estar associada. E tudo o que é norma se torna valor. Os valores que as novas gerações aprendem e irão ensinar.
Mas nada é eterno. Quem manda esquece que há um limite para a criação de dinheiro. O que acontecerá quando esse limite for atingido?


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