As ondas que se formaram na esteira da polémica dos
cartoons vão perdendo a força. Normal, a informação que circula a cada vez maiores velocidades é como um corredor de 100 metros: depressa perde o seu fôlego. Até ao próximo
sprint. Mas daria pano para mangas uma análise da agitação que aconteceu por estas bandas. As fronteiras entre Direita e Esquerda foram queimadas por todos os que tiveram algo a dizer sobre o assunto, e poucos se podem gabar de ter mantido o silêncio. Os esgares furiosos dos nossos liberais, a sua sanha anti-islâmica foi um espectáculo digno de se ver. O ódio anti-ocidental que, sem dúvida, cresceu a olhos vistos nos últimos dois anos (Iraque, lembram-se?) tem o seu correspondente naqueles que não esquecem o 11 de setembro e tendem a confundir uma ínfima minoria de islâmicos terroristas ou simpatizantes com a grande multidão que continua a viver em condições de diminuta liberdade, aqueles que sofrem na pele as duras penas infligidas pelos regimes totalitários do Médio Oriente, as petromonarquias que têm horror a qualquer cheiro de revolução que por ali se sinta. A falácia da liberdade oferecida pelos americanos vai-se desmoronando, os monarcas eternizam-se no poder sobrevivendo à custa da permanente chantagem energética que ameaça o Ocidente. O petróleo é uma arma apontada à cabeça, e sabemos como em situações extremas os descuidos são mais prováveis. Daí a tibieza da resposta da Europa à ira encenada da rua islâmica. Daí o atabalhoado assalto a terras iraquianas, em busca de um eldorado provisório que mitigasse durante alguns anos mais a fome de petróleo que sentimos.
Resumindo, as declarações quer da Esquerda quer da Direita em toda esta história por várias vezes caíram nos mesmos erros de sempre: a demagogia, a mentira, a hipocrisia. E na blogosfera, o clima repete-se: o matraquear de
Daniel Oliveira na tecla da xenofobia associada aos
cartoons; o rosnar ensanguentado de
Pacheco Pereira (é guerra! é guerra!); a maviosa ambiguidade do
Acidental, sem pruridos a defender a liberdade de expressão quando não está em causa a Santíssima Trindade e o Papa; as pancadinhas no ombro do ministro por parte de
Ana Gomes; o desfilar nauseante de argumentos desmontáveis ao primeiro esboçar de raciocínio, desde a ameaça à vida que a ira muçulmana representa (e os civis iraquianos? e os mortos palestinianos? e a agressão, esta bem real, do exército americano em terras do Infiel?) até à delirante invenção dos limites à liberdade de expressão, o respeitinho, os símbolos sagrados, etc., que para mim teve um dos seus pontos altos na crónica de Eduardo Prado Coelho há uns dias no Público, onde ele afirmava qualquer coisa como: as imagens matam a religioso e o religioso não pode morrer, um asco. E o pior dos argumentos, o da superioridade ocidental, defendido de forma fugaz por
Vasco Pulido Valente (cartada que ele corrigiu a tempo) e que tem o seu cúmulo na velha frase: "mas se defendes os muçulmanos, vai viver para um país árabe!" Um exercício de imaginação, apenas: a mesma frase disparada por um amigo a um islâmico descontente com o país onde vive, elogioso do modo de vida ocidental. Assim se vão afastando os dois campos. Como se a única causa da raiva que muitos islâmicos têm ao nosso modo de vida fosse o retrocesso civilizacional em que eles vivem. Branqueando num gesto as lanças que o Ocidente tem deixado no Médio Oriente, e a bomba atómica que despoletou tudo: a criação do estado de Israel, essa falsa pátria que devia envergonhar até o menos democrata dos judeus, pela sua origem dúbia, o fruto da má-consciência dos europeus ressacados do pior horror jamais vivido pela Humanidade, o Holocausto. E, surpresa, sabemos bem que não foram os "selvagens" dos islâmicos os responsáveis por este fatal desequilíbrio. Por isso, pagamos e pagaremos, e a América, hão-de ver, é que nos irá resgatar.
(A imagem é de um templo no Irão devotado a Omar Khayam, poeta muçulmano.)