Tenho um problema com a vida. Não com a minha vida, com a vida enquanto animal emboscado, vigiando as minhas decisões e os meus passos, esperando o erro inevitável. A ilusão da decisão é o pior dos enganos. Julgo proceder de determinado modo pensando desse modo obter um certo resultado, e quantas vezes acontece o contrário do correcto, do normal, avesso da realidade. Um exemplo, os vestígios que os outros gravam na pedra arenosa da memória. Quando volto a eles, acreditando que ainda encontrarei os traços originais, desenhando as imagens que imitam o acontecimento real, quando a eles regresso, de coração quase morno, descubro que tudo mudou; seria o rio e o seu movimento sem retorno mais estável do que o fenómeno da memória: aquele eu sei que viaja desde a nascente a caminho de uma concreta foz, debatendo-se entre margens, rodopiando através de montes e planícies, eu sei que o seu percurso é previsível, posso saber de cor cada mudança e transbordo, cada estação de calmaria ou temporal. Na margem aguardando a desova do salmão, em cada ano, será isto. A memória, contudo, não sei de que terra nasce, não sei em que mar desagua, muito menos confio nas sombras que se espelham nas margens do presente. A memória não escava um leito na rocha, estende-se como um aluvião por toda a vida, escoa-se sem darmos conta da sua presença. O que a vida tem de imprevisível é sempre consequência desta forma falível a que estou sujeito. Falha desde o tempo que penso sendo passado até a um futuro que toca o presente em que intuo a noção falível de tempo. Nem sei bem o que escrevo, a rede das palavras não consegue captar na totalidade a fluidez da matéria. Tudo se move.