Aquela última sequência da
Intriga Internacional, de Hitchcock, quando vemos um comboio a entrar num túnel, imediatamente a seguir ao beijo de Cary Grant e Eva Marie Saint.
Não mostrar dizendo tudo. É assim que funcionam os sonhos: reprimem a realidade e substituem-na por símbolos. Freud teria razão. Sonhar com comboios apenas pode ser o óbvio.
Limitemo-nos à vida acordada. O prazer de viajar de comboio associa-se aos mistérios de infância. Recordo que vivia a poucos quilómetros de distância da linha do oeste, e havia certas noites, quando o silêncio tudo apagava, em que o ruído dos comboios nocturnos soava ao longe. Convenhamos que, para um adolescente assombrado pela insónia, aquele som vago, de origem incerta, podia ser aterrador. Não acreditava que os comboios pudessem circular à noite. Era tão simples como isso. Mas assustava-me a sério. E deixava-me a imaginação em pulgas, o que depois despoletava sonhos, no mínimo, sugestivos. Pois é, o psicólogo tinha razão.
Agora, o comboio é um utilitário. Usado diariamente, perde o halo misterioso. As viagens de longa distância, no entanto, continuam a associar-se ao prazer, mas de outras coisas. Ler um livro numa viagem de Lisboa ao Porto, olhar a paisagem do Oeste, lembrar outros livros, como O Crime no Expresso do Oriente, passados em comboios. A razão do prazer: é como se fosse uma casa em movimento. Nós estamos lá parados, e já nos movemos. Sem darmos por isso, vamos de um ponto ao outro em pouco tempo. Paradoxos da relatividade. (Não nos podemos esquecer que o exemplo habitualmente utilizado para demonstrar a teoria da relatividade restrita tem a ver com andar de comboio. Porquê: a suspensão do tempo num comboio é quase palpável).
Lamento não ter feito o inter-rail, principalmente depois de ver o filme Antes do Amanhecer e o rosto assustadoramente belo de Julie Delpy.
Mas é apenas ficção...
Tudo isto para dizer que hoje vou para Coimbra e depois Porto de comboio. Será um prazer...