Tábua Rasa #4
Arquivado sábado, junho 04, 2005 por Sérgio Lavos | E-mail this post
ColumbárioCada ano que passa traz-me a lenha.São já muitos quando a camioneta chegacom as três ou quatro toneladas de mistura.Assim chama ás várias espécies derribadasque chegam para cada Inverno que lhe pago.Agora já digo ao Sr. Antunes: mais um ano.E ele ignora-me. Que se gasta a lenhamas é um conforto. Que é um pecado lamentar.Com o seu santo na medalha penduradonem lhe digo que também por cada ano,mais que a lenha, ardemos e ardemos.Jardins abertos. Em várias ruasao longo do anoitecerdistinguia-se quem lançava rápidos sinaise para um outro lado nos dispunha.Ainda nem eram precisos bares.Um autocarro, o metro, qualquer mesade um caféensinava-nos o caminho de elevadores,as janelas de onde se via,depois,a cidade adormecida.Um holofote amarelo contra o quarto que me alberga,toda a noite uma sobreluz de hotel que demoliaas tentativas de sono detrás do tempo sem blackout.Só na segunda noite me lembrei de penduraredredões das sanefas e o escuro me recuperou.Ouvia no rádio postos que não sei que transmitiam,de vez em quando devia cair no torpor dos barbitúricosque nehum efeito tinham já. O arabafado e seco pelas tubagens que não desligavam,as pernas entumesciam com as alergias cutâneasdebaixo de tecidos talhados com acrílicos.Atira os troncos cortados contra a parededa arrecadação, os pequenos toros caemcom um baque, tropeçam uns nos outros,julgamos que repousam.Mas depois vamos buscá-los para a segunda morte,além da árvore donde os abaterame nunca mais um pássaro lhes cantará.Também vai às outras árvores que me serra,algumas quase rente ao chão. Fazemsombra de mais, começam a ficar secas e com musgo. Parece que tudofica límpido quando tombam e as levapara um sumidouro que não sei.Nesse tempo o receio era tão pouco.Bastava estar atento ao mover dos olhos,à qualidade do sorriso, e todos éramosa grata euforia da entrega,a ejaculação que parecia nunca mais findar.Sempre outro corpo maisconnosco seguiria. Jardins abertos.Chuveiros com o mais forte abraço,um odor diferente em cada alegria.Talvez nos julgassem clandestinosmas não findavamas viagens súbitas para um novo leito.A noite despeja-me na noite, semi acordado,semi adormecido, num entre estado sem nome, como devem estaros cães encostados aos sem abrigo nos recantoscom os faróis contínuos do trânsito nocturno.Levanto-me no rumor de todos os ares condicionadosatirados do hotel para o seu saguão, e lembroa moto-serra do Sr. Antunes a desbravar o jardim fechado,a deitar por terra o vento que batia nos ramos,ficava tudo coalhado de um serrim pacíficoe os arbustos atrofiados pela capa sombrialogo se sentiam reerguer, alargar,ao contrário desta noite que pesa cada vez mais.Horas abauladas, procuro fugir-lhes no terrordas imagens nocturnas que numa outra luzpodem subor ao cérebro para despedaçá-lo.Mais tarde haverá novos rebentos, demoram algum tempo,vou-os arrancando a um por umnos sítios onde não quero que mais nada cresça.Outros sobem de novo cada vez mais alto, marcamcom os seus dias os meus diasnum sem retorno que também sou eu.Depois nem já clandestinos.A música dos novos baresatenuava um poucoa pretérita euforia das ruas.Pareciam barcas donde se ouviaclamores,a corrente fulgurava entre a sombrade cada corpoe da margem acenavam-noscom caminhos felizesque podiam ser logo abandonados.Ninguém já perseguia?Um clarão fulminantecruzava o céu de cada peito.O terreiro agora ficou sem os ramospiores, os de folhagem que enlameia a relva,partiu a camioneta tão enchidadesses sítios que já tiveram ninhosque só com muitas aselhas nos cordamesse consegue rebaixar, pequenos braçosvigorosos, resistem, não querementerrar-se uns pelos outros, procurampermanecer, divago eu, como nósao deus inútil tanta vez pedimos.Mas depois da nuvem de gasóleo da partidalogo me recolho e penso que na felicidadeé que julgamos inútil o que nos ajuda.Mesmo assim os sonhos do passado morto(morto, alguma vez morre tudo aquilo?)um por um vêm e calcam com a sua verdade inteira,pesistem nos pequenos rolos de cérebro derramado,seguem a sua astuta reconstituição, da infânciapara cima, de mais tarde para baixo,até conspurcarem todo o terreno parado do presente,sem ameaça, só com a certeza do que não volta atrás,do que ficou definitivamente assim. A lenha precisa ainda de secar, repetia o Sr. Antunes,durante um ano, são árvores de seiva matreira, todasfeitas para a falsidade, abrem um oco dentro da copa,só na extremidade fazem bolas de verdura opaca,fingem ser paisagem, amarelecem verdes ainda,morrem sem dor, com uma longuíssima resignação,tão longa que parece apenas um esquecimento.Jardins abertos. Ninguémos atravessa agora. Bares para o aturdimentode músicas. Tudo passou a história.Hoje há o cuidado. E se o amorultrapassa o prazer, restamos testes e as suas repetições.Só quis lembrar esta barra de fogoapagada.A vã duração do tempo.Escrevo estes versos de memóriasalheado já.Cada palavra mistura-se com todas.Mas lembra-te que pensei sempre,leitor, jardim aberto,de algum modo em ti.Deixa estar por uns segundos contigoestas histórias. Dá-lhes algum cuidado. Havia o Sr. Antunes. Pode serque voltes um dia a ter um tempopara de novo te sentares com elas.Dei-lhes o meu pensamento ameaçadopor um holofote tenaz.Se encontrares nisso algo que te sirvarecorda-o no teu espíritomesmo que nada se possa repetir.Eu digo para mim que é estaa utilidade da poesia,a lembrança.E que podes ainda, se parecem vãostodos os meus efeitos,largá-la de ti e haver proveitoem não seguires comigo todos os caminhosonde ressoam passos do meu precipício.Joaquim Manuel Magalhães, in
Alta Noite em Alta Fraga