Ponto a ponto, supondo que o contrário da questão não é para aqui chamado, presumo que o senhor pretende então atravessar para o outro lado da rua, evitar-me, mas não, não, não tenha medo de mim, que eu próprio me afastarei, me desviarei do meu percurso para dar passagem ao cortejo de onanistas que o segue para todo o lado, sabe, esses que bebem as suas palavras como se fossem ambrósia dos deuses, digo, os que o adulam para além do reconhecimento, mas enfim, permita-me continuar a ter independência de pensamento, posso não ter sido bafejado com o dom da clarividência, mas como cidadão conquistei há muito o direito de conjecturar, opinar ou criticar, ainda que, como vossa excelência diz, a opinião seja coisa de importância relativa, controlada que é por preconceitos e ideias falsas. Diz-me o senhor que por não ter sido abençoado não tenho direito a existir, partindo do pressuposto que existir está ligado directamente ao acto de comunicar; e não tendo nada a ver com essa mania sua de se desviar do meu caminho, permita-me censurar tal arrogância, delito de soberba, ainda que me encontrasse voluntariamente encerrado num casulo, sem qualquer contacto com o mundo, nem por isso deixaria de poder afirmar-me para além de qualquer dúvida. O saber-me a mim, reconhecer mãos, pernas, voz e pensamentos sem dúvida terá de admitir que será o suficiente, mas sei também que esta admissão requere alguma compreensão da sua parte. Peço-lhe portanto apenas isso, que acredite. Como disse, em tempos, o outro, falando da falácia muda da árvore sozinha no campo? Alguém poderá dizer que ela está lá, neste momento? E diga-me, ao desviar os seus passos dos meus estará a negar simplesmente a minha existência? Enquanto se afasta, penso: continuarei a dizer, e cumprirei o prometido antes, guardarei o rumo com cuidado de modo a que não cruze o seu, em nenhum tempo e lugar. Não porque o mereça, apenas porque assim tenho a certeza que subsisto.