Medo (3)
Arquivado segunda-feira, fevereiro 06, 2006 por Sérgio Lavos | E-mail this post
É que a velha frase de Voltaire, "posso abominar aquilo que diz, mas se for preciso defenderei o direito de o dizer com a minha vida" não perdeu ainda a sua força. E o que está em causa é isto, apenas isto. O mau-gosto e a islamofobia que estão na origem da publicação das caricaturas são pormenores lamentáveis que se perderam na cadeia de reacções ao acto provocatório do jornal dinamarquês. Ninguém imaginaria que a dimensão dos protestos fosse aquela a que assistimos, muito menos os racistas dinamarqueses que agora assobiam para o lado, escudados como estão na putativa defesa da liberdade de expressão. Festim para fundamentalistas, pois. Os de cá, começando em Bush e acabando no bispo de Viseu, e os de lá, e não falo das multidões de muçulmanos revoltados que incendeiam bandeiras e atacam consulados e igrejas (e já matam, parece), estes são apenas o instrumento que os líderes religiosos fundamentalistas usam para propagar ideias e ódio, a violência nasce da palavra de uns poucos e transforma-se na acção de muitos, sempre foi assim e a História, lamentavelmente, repete-se. Nós, do lado de cá - e permito-me este devaneio emprestado de Huntington apenas por questões formais - estremecemos, tememos e levantamos a voz defendendo conquistas de séculos, alguns de forma relutante, porque nada pode desculpar a islamofobia do acto inicial, outros cegamente enfeudados em certezas que, se forem questionadas da maneira correcta, se podem vir a revelar enfermas de preconceito e, lá está, racismo clássico. Mas há os mais perspicazes, os que sem pudores afirmam que devia ter havido mais comedimento e respeito por parte dos responsáveis dos jornais. Quando George W. Bush fala de democracia e liberdade nos países islâmicos, com certeza não fala do mesmo conceito em que eu acredito, a liberdade dele não é a mesma que a minha. Pois este é o homem que instituiu o "Patriot Act", cristão renascido que paulatinamente prepara o caminho, nomeando juízes da sua confiança, para a ilegalização do aborto nos E.U.A., o presidente que, indirectamente, controla a opinião do público americano, recorrendo quando necessário às melhores armas que uma democracia pode oferecer: a propaganda e a desinformação.
Os valores que a Europa deve defender não estão errados, e não apenas porque são melhores ou superiores aos valores que enquadram o Islão; eles são o nosso património cultural, o ponto de contacto entre todos os que cresceram nesta parte do mundo - e isso inclui filhos de imigrantes oriundos de países islâmicos -, derradeiro castelo conquistado ao obscurantismo de raiz cristã e a herança do Humanismo nascido no século XV. Abdicar desta conquista seria abdicar da nossa própria identidade e essência, por muito que isso custe aos que, à mínima ameaça, tremem desde as fundações. Quem poderá pôr em causa, a troco de um punhado de barris de petróleo, esta evidência?