Sucede que até acho os desenhos de mau-gosto. Sucede que toda a propaganda de teor racista ou xenófobo me incomoda, dá-me a volta ao estômago ver suásticas ou a saudação nazi. Sucede que desconfio de quase todos os irrepremidos defensores da liberdade de opinião que fustigam os islamitas inflamados que queimam bandeiras e embaixadas nos países árabes. Sucede que não há ponto sem nó e quase que consigo visionar as manifestações de indignação de muitos dos que vociferam se o deus gozado fosse católico ou mesmo judeu. Imaginem o que seria um
cartoon de Deus ateando o fogo a uma pilha de hereges ou um um
sketch humorístico em que víssemos Jesus curando alguns doentes terminais de SIDA depois de um sermão em que pregasse contra o uso do preservativo. Sucede que apesar de todas as reservas que se possa ter a respeito da motivação do jornal dinamarquês que publicou os desenhos ou das publicações que o imitaram num protesto classista com repercussões que, estranhamente, quase que incidiram apenas na imprensa tablóide, ou das dúvidas que possa suscitar a defesa acérrima da liberdade de expressão por parte de personalidades tão diversas e castas como políticos católicos polacos, bispos e cardeais portugueses, e, veja-se lá, até mesmo Blair e Bush, esses insuspeitos anti-islamófobos (devidamente acolitados pelo nosso Sócrates, provinciano como bom portuga que é), mas, escrevia eu, sucede que continua algo a escapar-me: saberão eles como é perigoso que uma turba de alucinados de deus decida do destino da liberdade em países que vêm fazendo um esforço há décadas para erradicar qualquer vestígio de interferência da religião no Estado, terão consciência do precedente que se abre nesta cedência ao ódio religioso árabe, pura expressão de um mediavalismo que apenas subsiste no mundo Ocidental como memória, escória que a custo tem sido varrida para debaixo do tapete da História? Valerá a pena, assim de um golpe, esquecermos um valor tão importante como a laicidade do Estado? A troco de quê? De algum petróleo, como sugere Vasco Pulido Valente? Uma vez mais, tem-se discutido mais o acessório - a qualidade dos
cartoons, o tom provocatório - do que o essencial: abrir um precedente de censura ou outro tipo de pressão que não passe pelos tribunais significa escancarar a caixa de Pandora. Para gáudio de todos os fundamentalistas adormecidos que aguardam do nosso lado da barricada.