Diário antigo (2)
Arquivado quarta-feira, outubro 25, 2006 por Sérgio Lavos | E-mail this post
Em relação ao que me disseram para fazer, falando do que me impuseram, recordando as palavras exactas deles, uma coisa apenas; olho, e breve é a lâmina que corta o pão. Serão as minhas mãos que seguram na faca e cortam o pão. Mas pensava em algo de importante. Sem dúvida, importante. Definitivamente importante. As migalhas espalham-se em redor, ocupam quase toda a mesa. Chove lá fora como se chovesse dentro da minha cabeça, e a minha cabeça é uma daquelas lâmpadas que aparecem nos cartoons quando uma personagem tem uma ideia. Brilhante cérebro, já me disseram em tempos. Uma vez, no mínimo. Uma vez, olhava o mar da avenida, sentado num banco de madeira, de pés apoiados no muro baixo, olhava o mar de mãos entre as pernas, lembro as mãos que tremiam de frio, seria talvez inverno, verão não, de certeza, verão não. Fazia frio e eu estava como se dormisse num iglô abstracto de um esquimó, dormia como um urso polar e olhava o mar, parecia que uma lâmina (igual à que corta o pão, talvez) pairava sobre o mar, julguei que uma lâmina cortava o mar em dois, ideia familiar, desconheço a origem da informação, e isto é a verdade, disseram-me para dizer sempre a verdade, impuseram-me isso. Que não poderia mentir. E eu não minto e sorrio com modos delicados, sou um ser dócil. Como uma lesma preta sobre uma folha de erva húmida, sob a pata que evita a poça no carreiro. Eu obedeço, sou dócil como um vento do deserto aprisionado. Domado. Corto o pão e sem querer corto a mão que corta o pão, o sangue explode. Chupo o sangue e quase choro. Mas não choro, o sangue salpica a toalha florida, é pena o estado a que as coisas chegaram. A minha mão é uma ruína, um eco de coisas passadas ressoa nos ossos, e eu consigo ouvir tudo. Ou quase. O resto, proibiram-me. Obedeço. Quase tudo.
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