É insano. Que me adianta sacudir a água do capote, desculpar-me
com mil desculpas esfarrapadas, justificar a atroz ignorância
das coisas fundamentais da vida? Imaginei, em tempos,
que era um qualquer Raskolnikov perdido na teia do crime,
mas aí, e mais uma vez confesso, cometi um fatal erro, disparo seco;
não é que não tinha ainda lido Dostoiévski, e não poderia portanto
evocá-lo, ainda menos em vão. Quem dera perder-me
de amores por uma sopeira puta, resgatá-la da perdição
que apenas este cruel mundo traz, tão parco de palavras justas,
versos certeiros. Informaram-me, lá no albergue onde costumava ir,
que sopeiras nem vê-las, putas só se fossem finas, broche
por menos de vinte contos ou uma vida inteira é assaz difícil de encontrar.
Sugam-nos tudo, estas mulheres de hoje. Trazem debaixo do braço um
livro qualquer de uma velha feminista barbuda, e genuinamente esperam que o nosso amor seja igual ao delas, as velhacas. Mas adiante, que me perco
em escusadas histórias. Vi-me então perdido no mundo em que tinha escolhido viver. Má sorte as modas serem tão passageiras como um morteiro
em arraial de Agosto, e Deus o valha. Naquele passado que pesco,
matreiro como um negro, não há lugar para tal desejo; ainda não tinha pegado no Crime, não poderia ter punição, o pior dos males. Então, que
sentido há em arrancar de algum obscuro canto da memória - memória
que na verdade não foi, não é, nunca será - tal danação?
Um som, o do verão crepitando no ritmo das espigas maduras,
um cheiro, o do milho calcinado nas fogueiras de São João,
nenhuma culpa, nem castigo, das fogueiras do Inferno não me livro -
no verão, quando me sentava debicando a passarinha da sopeira Maria,
desvendava o segredo que as camisas do milho e os saiotes
ocultavam:
mais vale um pássaro no verão que um bando de letras a voar.
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