Tudo o que vale a pena não está aqui.



Matéria inglória


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Um dia iremos acordar na bancarrota,
sem nenhuma hipoteca moral que nos salve
do afogamento - e isto não é uma metáfora,
a bancarrota virá e seremos arrastados para um buraco fundo,
e o que diremos então dos passivos, desnecessários,
do amor e da poesia e das tardes passadas a remoer
nas acções por concretizar, a linha do rio
na maré baixa assombrada pelas estridentes gaivotas.

Esse dia, quando a necessidade desaproveitar o ócio,
será radioso; a utilidade que o tempo provará ter,
preencher a concretude dos minutos, a correr de um lado
para o outro, construindo coisas mais reais do que a estupidez
da literatura, fumando cigarros urgentes, nervosos,
e não imagens de um qualquer tédio, que por essa altura será
apenas uma reminiscência de um tempo que os jovens
não lembrarão - são assim as novas gerações.

O dia - negro, furioso, trará homens a cair de prédios altos,
e esse movimento descendente ecoará outros homens do passado,
e o símbolo fixar-se-á ao eixo temporal como um alicerce de aço: quando
um mundo acaba, homens matam-se para fugir à morte,
e não lamentaremos a ironia da desgraça - uma certa beleza
nasce no momento em que no écrã o corpo é um risco
no céu, uma mancha contra a cidade que se prepara para a ruína
como se fosse uma velha actriz na sua última estreia.

Mas este dia, hoje, é límpido, agora, é límpido e claro;
choveu de manhã, é verdade, mas a tarde irrompeu
como um insecto da toca, colocámos sobre os joelhos
as velhas mantas da melancolia, ligámos a televisão
e adormecemos a ver um filme romântico; chega-nos isso.
O crédito que nos proporciona a felicidade não sofre
das flutuações do mercado, seremos náufragos num mar de hipotecas
furadas, remando contra a corrente das empresas falidas; amarrados

a uma proa que está a salvo da morte das sereias, actores de uma epopeia
suburbana que apenas deseja ser lida nos corredores
dos supermercados e nos comboios que regressam a casa.

Onde está a moral? Não nesta casa; a tarde, incurável,
não ditou que a noite terminasse. O ritmo familiar
é uma venda nos olhos - seguir, sempre, em frente.

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