A linha foi-se apagando do caderno,
os pontos e as cedilhas, o movimento das curvas
e o rigor das rectas;
depois, o vinco no papel,
leito e fractura,
foi também aos poucos desaparecendo.
Dentro em pouco restaria apenas uma sombra,
um borrão de tinta ao canto da segunda página
e alguns vestígios de borracha colados à margem.
(apagar a literatura é o pior dos pecados)
Quando retirei o maço de folhas
descoladas
da mala de couro castanha (do tempo das viagens do meu pai)
e soprei o pó no fole de luz da casa velha
- e seria mesmo ali, ou antes na adega escura? -
lembrei-me de um dia, mas não era o certo;
uma névoa caíra sobre a data exacta,
e a espectacularidade do efeito (o isco perfeito da memória)
perdeu-se.
Mas foi na aula de português, e a professora (sem rosto agora)
entregou-me a redacção de um modo frio, uma tarefa.
Terá sido esse momento de charneira de que falam?
Talvez o vazio da página seja o tipo de resposta que mereço -
quem me manda abusar do sentimentalismo?
Letras que não estão lá, o poema deslumbrado,
de que somente eu tenho conhecimento;
Não há prémio que não tenha o seu reverso -
e que mérito há em escrever no vazio,
à espera que a morte funde o seu reino,
estabeleça fronteiras, se apodere?
E apodreça?
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