Tudo o que vale a pena não está aqui.



Diário antigo (4)


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O que julgam saber de mim, o que esperam saber de mim? só porque me carregam em ombros, me arrastam. Por ser quem sou, por ter sido despojado da centelha que em tempos me animara, serei menos que os outros que passam na minha linha de vista, também já me comovi com a música, outrora ouvia na casa em frente uma rapariga de longos braços tocando um piano escondido no ângulo da janela, e as notas que subiam dali e pairavam em volta eram relâmpagos sacudindo o corpo por dentro, por vezes, muitas vezes, os que ao longe caminhavam viam-me chorar incontrolado e com certeza, de certeza que também se comoviam, que tem aquele homem, que mão invisível, mão-cheia de segredos, o toca, e por ele entra, porque chora? Apenas porque sou levado à força, apenas porque perdi a força e a vontade, não sou menos que os outros que não querem que eu seja como uma rocha, parado no espaço, querem que eu me mova através das ruas, das cidades, o que os incomoda é o meu imobilismo, por isso me carregam de lugar em lugar, ao acaso, mas dentro ainda adormece o meu corpo embalado pelo sopro incorpóreo que desce daquela casa onde um piano soa. Mais que a música, imagino ouvir a respiração da rapariga de longos braços enquanto toca, os esforços mínimos, o pulsar dos músculos sobre as teclas, os pés dançando nos pedais, tensamente controlados, a jaula de luz a transbordar de beleza, extensões estendendo-se sobre o tempo. Que me levem, me desloquem para casas desconhecidas, dentro de mim ainda vive o enlevo da música dilatando as veias e a carne. Viajo mas estou parado no tempo.

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