Outro esclarecimento
Arquivado sábado, novembro 22, 2008 por Sérgio Lavos | E-mail this post
Aproveitar para, num intervalo, pôr a correspondência em dia, significa chegar a casa, abrir o computador (será isto uma figura de estilo?) e começar a escrever. Não escrevo a ninguém, ninguém me escreve, deixo que a névoa do texto aceite o pouco que tenho a dizer. Quando se dissipa a vontade, regresso aos afazeres realmente importantes que me esperam. A concretude da banalidade é uma manta que cobre a inquietação das coisas insolúveis. Mas enquanto isso não sucede, desenrolo o novelo inútil da poesia, sem sequer conseguir me aproximar da desenvoltura de um gato (imaginário). Serve de alguma coisa escrever que nada serve de nada? A sucessão de palavras é uma ocupação inútil dos dias, é certo, mas o sentido estético desta multiplicação absurda obriga-me a dedicar algum desejo a esta espécie de cópula tântrica e estéril.
A minha correspondência com a morte: aqui estou, de longe, como se estivesse num território estrangeiro, alistado num exército condenado a não ter baixas, apenas espectros que esperam por uma madrugada que traga com ela a batalha. Não sinto nada, não vejo nada, nenhum pó cobre os meus ossos, e apenas o silvo de balas imaginárias se ouve; a sua trajectória irregular mantém-me desperto, e, de resto, as mãos que desinquietam as metáforas precisam da sensação de perigo, da ameaça.
Haverá alguma coisa mais importante que este diálogo distante? Aquilo que me empurra para fora da trincheira: o conforto de uma casa familiar na gélida noite, o crepitar do óleo no aquecedor, o filme certo a rodar no televisor, a imagem cristalizada ao toque do polegar. No fundo, tudo conta para a soma das frases; isto é igual a aquilo, e tanto se escreve contra o esquecimento como contra o frio: escrever para não arrefecer, não parar. Pôr a correspondência em dia.
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