Tudo o que vale a pena não está aqui.



Natureza-morta


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A gente de fim de tarde a passar,
pedimos um café, acendemos cada um o seu cigarro
e deitámos à sorte as cartas que trazíamos
acumuladas nos bolsos. Lembrava-me,
enquanto sacudia um fósforo contra
o sol arrefecido, de uma certa ocasião
em que encontrara derrotada a um canto
da sala de aula a colega sem nome,
- e digo sem nome porque entretanto se desvaneceu
o belo enquadramento das letras passeando-se
pelos meus sonhos de adolescente – e eu aproximei-me
seguro no meu conhecimento dos estados melancólicos
do género feminino – oh, como eu não sabia
ainda de cor os versos de Camões, ardia de um fogo
Queimando mais nas partes vergonhosas
que no coração intocado de falso romântico –
ela soluçava sabendo do seu canto de donzela
ecoando desde tempos em que apenas se pensara
mulher, e eu mal sabia da armadilha, avançava
apontando no escuro o caminho a seguir.
Na serena tarde sorria da lembrança e acabava o café
tentando descobrir no rosto dela o retrato
da namorada de quem não consigo acender aqui
o nome, mas nem sempre a realidade
necessita de tão precisas catalogações; para isso, recorremos a
fotografias e a longínquas pinturas de Vermeer.
Mas procuro muito longe, e nada do que invento pode
substituir a pele daquela que
troca comigo cigarros e roçar de pernas
por debaixo da mesa de fórmica onde
no final depositamos um pouco mais
de engano a caminho da tarde
que entretanto acabou. Esquecida por nós,
a carta com a solução. Rimos pela rua abaixo,

levados pela luz da noite quase viva.


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