Fomos pela água, pelo rio,
cada um no seu percurso, atirando
cascas e pedaços de conversa um ao outro;
tínhamos bebido mais do que a nossa conta -
graças a um deus desconhecido -
e por isso podíamos falar de quase tudo,
da última foda à absoluta beleza
dos filmes de John Ford, sem precisarmos
de cuidar dos outros;
perdidos de nós próprios?
Reencontrados,
a caminho de um fim de tarde muito quente,
entre mãos e um ou outro toque
rápido no interior das coxas,
devemos ter negado à morte
alguns momentos de domínio,
sabendo bem que um dia ela voltaria
a reclamar o que de direito é seu.
Talvez aquele rio,
aquele rio, a água
espelhando o movimento das nuvens
em direcção à foz,
estivesse a perder a nitidez, o claro brilho.
E o meu rosto,
e o teu rosto,
cruzando esse movimento - não era o mesmo,
o teu não era o mesmo.
Olhámos para a superfície,
o gume liso da água: o limo e os detritos
arrastados pela corrente eram mais do que um sinal;
e quando nos afástamos da margem,
o esquecimento prosseguia na sua voragem
súbita.
Não importa.
Cada dia tem o seu regresso,
e mais vale aceitar esta verdade -
as outras são duras de mais,
não sei se conseguimos.
Voltámos pela água, vindos do rio,
e não havia mais ninguém, enquanto a porta não se abrisse,
deixando entrar o sol,
cortando a penumbra como uma língua de fogo.
Não importa.
O medo de um homem
é o seu salvo-conduto - o bilhete
que entregamos ao barqueiro, a tempo da viagem.
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